Era como se eu houvesse fechado meus olhos por apenas alguns segundos, mas o sol já iluminava o quarto quando o despertador tocou. Eu caíra num sono sem sonhos, e aquilo me incomodava. Quando sonhava eu sempre ficava ciente do que acontecia ao meu redor, fosse bom, ou não. Nada de sonhos significava inimigos planejando coisas sem o meu conhecimento.
— Heitor? — ouvi a voz de Lucinda chamar-me na porta do quarto.
— Oi?
— Hora da escola — falou quando viu que eu ainda permanecia deitado. — Você vai querer ter uma vida um pouco normal, não é mesmo? Ao menos por enquanto?
— Sim, eu já vou começar a me arrumar — menti. — Mas a respeito da vida normal, acho que isso não será possível. Com toda certeza não.
Ela entrou no quarto e então se sentou ao meu lado na cama.
— Heitor, sei que tudo está sendo muito difícil para você. A morte de Arminda. Justo quando o portal hanariano está perto de ser aberto... Passar a viver com uma estranha, conviver com a falta, saber que se fraquejar será facilmente morto. — Ela parou para avaliar minha reação. — Todas essas coisas. Eu entendo que você esteja um tanto confuso, mas gostaria que soubesse que não há vitória sem luta. Os membros do conselho não acreditam que tudo dará certo. Mas temos que levar em conta que eles são seres desiludidos pela baixa perspectiva humana.
— E se eles estiverem certos? Se eu e esta outra fracassarmos? Nós não temos garantias nem mesmo da data em que o portal será aberto... isso me deixa apreensivo — confessei.
— Você tem que acreditar, Heitor, é imprescindível.
— Eu tentarei.
— Isso já é um bom começo — falou, tentando parecer o mais confiante possível. Mas eu quase podia ler todos os pensamentos contidos naquele olhar de pena. — E agora vamos lá, o colégio o espera. Daniel já está o aguardando lá embaixo.
Após tomarmos café, eu e Daniel — ele não sabia cozinhar em casa —, seguimos para a escola.
Lucinda havia tentado de qualquer forma nos levar até lá, mas nós conseguimos convencê-la de que não precisávamos dela para andar alguns metros até a parte baixa da cidade.
— Sério que você vai mesmo para a escola, seu nerd? — perguntou Daniel enquanto estávamos na metade do caminho.
— E para onde você estaria indo com uma mochila nas costas, idiota?
— Você esqueceu que hoje é a final do campeonato de skate?
Sim, eu havia esquecido.
— Da última vez que saímos da cidade não deu muito certo — falei, lembrando do incidente com a falha da minha barreira protetora. Quando eu a deixei fraquejar e acabamos rastreados por um melta.
Eu nunca vi Daniel correr tanto com um carro como naquele dia.
— O campeonato é no Vale das Estações, seu otário — explicou.
— Você está levando um skate na mochila?
— Lógico que não. Só que se eu fosse até lá sem mochila nem nada, a tia Lucinda iria perguntar para onde é que a gente iria, não é mesmo?
— Mas eu não vou.
— Não vai por quê? A galera tinha combinado desde a semana passada!
— Aí é que está. Eu não tenho memória tão boa assim. Além disso, você sabe que a... Imperatriz chega hoje.
— Ahhh, lógico que tem um dedinho da senhora-da-pedra-preta no meio — era assim que ele se referia a ela. — Você nem conhece a garota e já está caidinho por ela. Querendo dar uma de quietinho... Seu Mané!
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Vale das Estações
FantasíaHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...