À noite, quando fui despertada pelo terror noturno e acabei acordando Heitor, ele foi ao meu quarto e me abraçou apertado enquanto eu chorava, como sempre fazia. Porém, nenhuma palavra saiu de sua boca mesmo depois que me acalmei. Naquela noite não houve canções no violão nem conversas sobre os livros que eu li. Ele nem mesmo aceitou jantar comigo, algo que havia se tornado praticamente um ritual nos últimos dias. Mas, naquele momento, eu sentia como se nossa amizade, lentamente, ruísse.
Será que ele estava cansado daquilo tudo? Eu certamente estaria atrapalhando seu rendimento nos treinos de natação e na escola. Que direito tinha? A vida das pessoas não podia girar exclusivamente em torno de mim.
Decidi então fechar os olhos e controlei a respiração fingindo adormecer enquanto captava o bater de pernas ansioso de Heitor ao me esperar dormir. Alguns minutos depois de se certificar que eu estava dormindo ele levantou-se com cuidado, desligando o abajur e fechando a porta atrás de si.
Pulei da cama imediatamente e comecei a olhar para o cuco marcando as horas na parede branca do quarto. Alguma coisa estava muito errada e a culpa era minha.
Tomada por todos os mais angustiantes pensamentos, não consegui dormir. Esperei as infindáveis horas da madrugada deitada na cama e ruminando coisas que não me permitissem cair no sono. Eu não poderia atrapalhar a vida de mais alguém.
Àquela altura já estava convencida de que Heitor era meu amigo, mas até amizades precisavam de limites. Estava certa de que não dormiria ou me amordaçaria, se preciso fosse. Qualquer coisa para livrá-lo do fardo.
No dia seguinte, quando os raios do sol entraram pela janela do quarto e aqueceram a pele do meu rosto, levantei-me da cama farta de fingir dormir.
Estava completamente disposta a não gritar uma vez sequer naquele dia. Disposta a controlar meu medo.
Tomei um banho rápido no banheiro do quarto e pela primeira vez em semanas consegui controlar totalmente o terror ao entrar em contato com a água, embora ainda pudesse sentir meu pulso acelerado e o suor frio no topo das minhas têmporas.
Vesti uma calça de cintura alta e uma blusa amarela lisa qualquer, penteei os cabelos e peguei, também, pela primeira vez, um dos inúmeros pares de sapatos que Lucinda havia comprado para mim. Talvez eu devesse ser mais forte, talvez fosse possível lutar contra a minha própria mente.
Após uma ceia rápida, percorri toda a imensa casa e concluí que Heitor estivesse dormindo. Tentei também não mais pensar nele e no quanto o incomodava.
Liguei a TV da sala de estar e uma jornalista dizia com voz afetada:
"Bom dia, Pernambuco e região. Domingo, 19 de junho..."
Dois dias depois faria um mês que meu aniversário de 17 anos havia se passado. Ele chegara e se fora quando eu estava presa naquela clínica, como se não fosse nada em especial. Mas a verdade é que não era mesmo. O melhor presente que eu pude ganhar foi permanecer viva e aquilo já deveria me parecer de bom tamanho.
Comecei a sorrir sozinha da situação.
— Okay, você é mesmo um pouco estranha — disse uma voz atrás de mim.
Daniel olhava de mim para a televisão de uma forma esquisita.
— Digo, qual a graça num jornal que está anunciando formas ideais de se plantar uma árvore? Tudo bem que a repórter seja esquisita... mas nada digno de risos.
— Ah, oi! — falei, ignorando a observação sobre a repórter e a sensação estranha em meu estômago que me mandava correr para bem longe.
— Oi... — Ele estava na porta da sala, olhou ao redor procurando por alguém e começou a se aproximar devagar de mim como se eu fosse um bicho arisco. — Hãn... Está tudo bem hoje?
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Vale das Estações
FantasiHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...