20. A Ilíada - Heitor

221 24 12
                                    

Lucinda estava sentada na sala de estar. Aos seus pés havia uma cesta com novelos de lãs de, provavelmente, todas as cores existentes no mundo. Frente ao seu rosto, duas agulhas de tricô trabalhavam como se estivessem sendo movidas por mãos fantasmas. Aquilo era engraçado, ver uma mulher com não mais de quarenta anos tricotando por meio de magia.

— Esta não é uma forma justa de competir com as outras velhinhas que fazem tricô — falei, fazendo com que ela se assustasse e derrubasse suas agulhas no chão.

— Heitor! — exclamou. — Eu estava concentrando minha magia...

— Você ainda acha que as barreiras terem fraquejado foi culpa sua, não é? — Lucinda se encolheu diante da minha pergunta.

— Eu não sei... Isso era algo impossível. Mas aconteceu... — falou, voltando a colocar as agulhas frente ao rosto.

— Entendo — murmurei, embora não entendesse coisa alguma.

— Fiz canja de galinha para o jantar. Daniel não irá aparecer hoje, então sugiro que não desperdice meu trabalho e vá comer. É bom para você, dá forças.

Como se uma canja de galinha fosse capaz de me dar as forças que preciso.

— Então... Eu vou indo... E como foi com Zínia? Quanto à garota? — perguntei.

Lucinda soltou um leve suspiro enquanto via aparecer em sua frente um suéter.

— Minha irmã exerce sobre mim um antagonismo inexplicável, mas poderei superar. Quanto à menina... Continua inconsciente, mas barulhenta. Isso me preocupa, nunca vi um humano desta forma.

— Você disse que tentaram matá-la. Acho que qualquer pessoa estaria meio que traumatizada...

— É, tem certa razão — concordou rapidamente. — Agora vá, eu preciso me concentrar.

A guardiã claramente não estava a fim de bater papo, então sem muita escolha saí do seu campo de vista. Fui até a cozinha e de imediato resolvi trocar a canja por um pacote de biscoitos. Lucinda certamente não estava nos dias de inspiração culinária.

Subi até meu quarto e, ao passar pela porta do aposento ao lado do meu, tive a certeza de que ainda podia ouvir o bater frenético de um coração.

Tomei mais um banho para me livrar do cloro da piscina e me meti embaixo dos lençóis enquanto jogava no Ipad. As horas se passavam e a constância das batidas do coração da garota só aumentava. Dormir seria uma tarefa difícil naquele quarto.

Desisti de fechar os olhos e peguei meu violão para ver se conseguia compor alguma coisa. Após horas a fio, eu estava dedilhando uma canção. Percebi logo depois que o ritmo da música era o mesmo do coração da parede ao lado. Onde parcas foi parar a proteção acústica que Lucinda lançara naquele lugar?

O relógio na parede do meu quarto marcava duas e meia da manhã e eu sequer havia cochilado. Decidi pegar meu travesseiro e dormir na sala, aquilo estava se tornando insuportável.

Quando me encontrava prestes a sair do quarto, pude ouvir.

Eram gritos.

Gritos de um alguém desesperado, de alguém que estava em apuros. Ela berrava como se houvesse um criminoso ou algo do tipo a estrangulando. Gritos que nenhuma pessoa em seu mais terrível pesadelo seria capaz de produzir.

Esperei algum tempo para ver se Lucinda viria. Ninguém apareceu e a garota continuava a gritar em plenos pulmões. Deveria ser a proteção acústica. Mas aquilo era horrível, como poderiam deixá-la enquanto era assustada por algo que a fazia ficar daquele jeito? E por que eu conseguia ouvi-la?

Vale das EstaçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora