33. Krengers - Heitor

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ALGUMAS HORAS ANTES

Quero que alguém a leve para cima — disse Lucinda após constatar que estava tudo bem com Briseis. — Ela precisa descansar bastante. Tenho certeza de que os últimos dias foram os mais agitados de sua vida e temo que a situação não irá melhorar.

Dei um passo em direção à garota no sofá ao mesmo tempo em que Daniel. Nos entreolhamos. Fingi não perceber a raiva em seu rosto e fui para mais perto.

— Heitor — chamou Lucinda, no exato momento em que eu colocava as mãos abaixo da nuca de Briseis para poder içá-la. — Eu preciso do livro de Vornek e de algumas ligações. É necessário entender como ela veio parar no Vale das Estações no dia em que a encontrei.

— Então eu posso levá-la — ofereceu Daniel, de maneira displicente.

— Não precisa — dispensei —, o quarto dela é no mesmo corredor que o meu. Além disso, eu iria subir de qualquer maneira para pegar meu celular.

Na realidade, eu ainda não estava muito seguro sobre deixar Daniel acompanhar a garota. As circunstâncias nas quais o incidente que culminara no atual estado de Briseis ainda não estavam muito claras para mim.

— Lucinda, eu já volto — falei para a guardiã e logo depois me dirigi a Daniel. — Melhor você ficar aí, acabou de carregá-la e.... enfrentou um mago ainda esta noite. Eu levo, sem problemas.

— Tudo bem. Vá logo — disse Lucinda, se virando depois para encarar o garoto ao seu lado, sua expressão estava carregada. — Daniel querido, vamos conversar por enquanto.

Passei o peso da garota para os meus braços rapidamente. Daniel me fuzilou com o olhar, interpondo-se em meu caminho. Após alguns segundos, me deu passagem a contragosto, acompanhando Lucinda. Ele fez uma careta e sentou no outro sofá. Nós sabíamos que além de querer todos os detalhes do que havia acontecido, Lucinda lhe daria o bom e velho sermão que conseguia fazer você se sentir culpado até mesmo por existir.

Comecei a subir o lance de escadas, que dava no pavimento de nossos quartos, como se carregasse chumbo. Perguntei-me onde fora parar a força sobrenatural que eu havia ganhado em meu décimo sétimo aniversário. Certamente não lembrava de que a garota parecia tão pesada da primeira vez que a peguei em meus braços. Ela também não aparentava ter ganhado peso algum. Pelo contrário, apesar das curvas impossíveis de não se notar, suas bochechas estavam quase encovadas e a pele cor de amêndoa tinha um tom opaco. Imaginei como ela seria quando estava bem, quando ainda possuía sua perfeita vida antes de nos conhecermos.

Olhando seu rosto adormecido, enquanto caminhava até o quarto, sentia como se ainda a visse através de um sonho. Entretanto, agora o sonho possuía cor, peso, forma e cheiro... Um cheiro incrível como um campo de madressilvas e canela.

Eu não conseguia me acostumar àquilo. Não conseguia fazer com que minha mente vagasse por outros assuntos sem que inconscientemente eu retornasse a ela.

Decidi parar de olhar seu rosto e me fixei na porta ao fim do corredor. Encará-la tão próxima a mim me trazia sentimentos e sensações estranhas.

Entrei no cômodo com esforço, empurrando a pesada porta de madeira com as costas. A cama ficava apenas a alguns metros e, apesar do peso, tentei empregar a maior suavidade possível ao colocá-la sobre a superfície. Seus cabelos se espalharam pelo travesseiro branco e emolduraram o rosto. Adormecida, Briseis demonstrava uma serenidade que não condizia com a situação que vivíamos.

Levei a mão até a pele quente de sua bochecha e afastei com cuidado uma mecha que lhe caia frente aos olhos. O frio que tomou meu estômago ao entrar em contato com sua pele fazia parecer que eu engolira dez mil cubos de gelo.

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