23. Canções - Briseis

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Depois daquele dia, meu nome havia mudado e, junto com ele, uma parte de mim. Os dias no Vale das Estações se passaram aparentemente calmos, embora houvesse uma sensação, vinda sabe-se lá de onde, que me impedia de descansar totalmente.

Quando encontrei Heitor posteriormente, tentei o agradecer por ter ficado comigo naquela noite e impedido que eu desabasse, mas ele recusou veementemente assumir qualquer incômodo. Após noites seguidas de pesadelos constantes e sua presença ao meu lado até que eu conseguisse dormir, me convenci de que ele não estava tão aborrecido com a situação. Ou, se estava, conseguia disfarçar muito bem.

As madrugadas em claro serviram para que pudéssemos nos conhecer melhor — o que significava que o garoto me convenceu a ler sua coleção de quadrinhos enquanto escutávamos a discografia completa do Queen, sua banda favorita.

— Achei aquela música incrível — refleti subitamente numa madrugada após escutarmos A Night at The Opera em looping infinito.

Heitor puxou o seu lado dos fones de ouvido e me olhou confuso.

— A que você tocou para mim naquela noite — falei num sussurro antes que minha voz sumisse por completo. — De qual banda é?

— Ah, está falando de Between the bars? — perguntou meio que sem graça. — Pensei que não estivesse ouvindo.

— Eu estava.

— É do Elliott Smith, ele tem umas músicas muito legais. Não o conhecia, mas descobri essa e várias dele assistindo Gênio Indomável. É um filme realmente bom.

— Poderíamos assistir juntos depois — sugeri.

Ele balançou a cabeça e disse:

— Alguns contam que Between the bars fala sobre álcool e vício, já eu prefiro pensar que é sobre alguém — Seus olhos estavam fixos no meu rosto.

Balancei a cabeça, anuindo. Concordava com aquela interpretação, ainda que a tradução "por entre os bares" também soasse muito convincente.

Heitor afastou uma pilha de quadrinhos que estavam em cima da cama, pegando um exemplar e deitando-se sobre o travesseiro ao lado do meu. Ultimamente a maioria de suas coisas divertidas estavam espalhadas por meu quarto. Manter-me distraída dos pesadelos exigia um esforço colossal e muito do seu tempo,  mas ele continuava ali.

— Você poderia tocá-la novamente qualquer dia desses — pedi.

Ele manteve seu rosto escondido atrás da revista enquanto balançava um dos pés.

— Ei, não acha isso injusto? — desconversou. — Te mostro as músicas que gosto e você não contribui em nada para nossas noites de cantoria.

Resolvi desistir de obter minha solicitação. Se tinha uma coisa que eu aprendera sobre Heitor era que ele nunca cedia facilmente.

Expirei simulando estar exasperada.

— Tudo bem, mas ainda está me devendo uma música.

Ele baixou a revista, arqueando uma sobrancelha para mim, esperava minha contribuição.

— Eu te contei sobre a Banda do Mar... — falei. Aquilo estava sendo mais difícil do que parecia ser. Eu costumava ouvir muitas músicas antes de tudo, elas sempre tiveram a capacidade de ativar minhas memórias afetivas. Por isso era doloroso pensar em algo que me remetia à antiga vida.

— Você conhece uma grande parte das músicas que te mostro — Heitor avaliou. — Mas só sabe nomear uma banda favorita?

— Acho que também tem The Civil Wars... — continuei. — Ah, encontrei um cantor muito bom no ano passado! Phill Veras, suas músicas são incríveis.

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