0. O início do fim

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O início do fim hanariano chegou como qualquer fim deveria chegar: havia sangue, medo e dor. Porém, diferente dos fins habituais, aquele trouxe consigo uma fagulha de esperança.

Enquanto todo o povo livre dormia, crente de que os três sóis iriam raiar no horizonte mais uma vez, um vórtex se iniciava nas regiões que compunham o centro de um mundo chamado Hanaros — onde a magia era algo real, capaz de romper com os limites físicos e temporais de qualquer espaço.

Um mundo que tinha tudo para ser repleto de sonhos e belezas, mas que, após o contato com os seres sem magia viu tudo aquilo ser destruído por cruéis e incansáveis inimigos. Famintos por poder, eles levaram a desgraça e medo onde quer que fossem. Porém, os inimigos não sabiam que nos mesmos lugares onde o medo cravava suas garras, a esperança podia crescer sorrateira, como uma erva daninha, capaz de invadir até mesmo uma fortaleza de sombras.

E é bem aqui, neste ponto, que a história sobre o início do fim começa.

Para além dos vales congelados e do golfo invernal na costa norte, no interior de um gigantesco castelo, onde sete imponentes torres entalhadas em turmalina negra se erguiam em direção a um céu de cor pálida, uma mãe acalentava com extrema devoção a filha recém-nascida.

A pele da mulher era preta, semelhante à obsidiana e brilhava — como se a maternidade tivesse lhe proporcionado alguns tons a mais de vida. Longos fios castanhos encaracolados desciam em cascatas cheias além da sua cintura. No pescoço, uma joia de ônix refletia a luz bruxuleante dos archotes, contrastando com a tiara dourada adornada por turmalinas no topo de sua cabeça. Suas vestes, cosidas pelas mais habilidosas tecelãs da dimensão primaveril, não deixavam dúvidas de que ali estava a senhora daquele castelo. Embora os raios de sangue que manchavam o tecido fino do vestido e o suor que lhe tomava a face compusessem uma apresentação incomum para uma rainha hanariana.

Ela resfolegou ao tentar reunir forças para alinhar a filha ao peito e se erguer da cama. Quando por fim conseguiu trazer a criança para perto de si, o cheiro pungente do sangue que a cobria lhe tomou as narinas, fazendo com que franzisse o nariz. Para alguém que nunca viu o sangue brotar de um talho na pele antes, aquela era uma experiência assustadora. Afinal, seres mágicos — especialmente nixges como ela — não eram suscetíveis a ferimentos físicos. A magia presente em seus corpos restaurava toda e qualquer lesão que não fosse causada por outra fonte mágica. Porém, naquele instante, a rainha não era apenas uma nixge, mas também uma mãe. E, havendo antes dentro de si um ser que utilizou magia para vir ao mundo, não existiam formas de evitar ficar à mercê de sensações tão humanas.

A mulher trincou os dentes e praguejou em seus pensamentos.

Nada que fizesse alusão aos malditos humanos poderia ser bom. Por culpa deles, não pôde aproveitar a chegada de sua filha, ficando tensa como as cordas de um bandolim, enquanto aguardava a execução do plano de fuga que arquitetara.

Com esforço, a rainha se desvencilhou dos pensamentos e caminhou até a janela do quarto. Precisava captar as últimas imagens de seu mundo imperfeito, ver tudo o que estava prestes a sacrificar.

Apesar de não mais sofrer para se mover, permanecia rígida. Havia uma dor que latejava e aprisionava o seu peito, num lugar onde a magia não conseguia alcançar. Inimigos buscavam sua filha que mal nascera; livros proféticos anunciavam o fim do mundo como ela conhecia. Mas não se permitiu interpretar nada daquilo como mau presságio.

— Lutarei para que nada te aconteça, meu amor — murmurou, fitando com doçura o semblante sereno da criança adormecida. — Protegerei você para além de todas as eras, através de todas as existências...

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