— Olá — falou Briseis acima do barulho constante dos grilos. — Até que enfim te achei.
A luz do poste à nossa frente piscou e depois se manteve acesa, fazendo com que eu captasse o jeans e blusa preta que a garota usava. Ela trazia algo nas mãos que só pude identificar quando estendeu a coisa em minha direção. Notei ser um pedaço de tecido preto: o meu casaco.
— Não... — comecei a falar.
— Vamos, pegue — insistiu. — Obrigada, foi muito útil. Porém não preciso mais, acho que me acostumei ao clima maluco desse lugar.
Recuperei o casaco e coloquei nos braços, agradecendo pelo pequeno conforto que estar aquecido me causou. Quando inspirei novamente, senti como se Briseis estivesse perto demais de mim. Era o seu perfume, a inconfundível mistura de madressilva e canela em todo lugar do agasalho.
— Desculpe pelo atraso. — A voz embargada me afastou da sensação reconfortante que o seu cheiro me trouxe. — Estava no enterro dos mortos da tragédia.
— Paula... — perguntei, tentando desviar minha atenção daquele detalhe.
— Desolada — respondeu a garota. — Mas ela não me olhou ou fez menção a querer me matar em momento algum. Não entendi o que aconteceu, mas me permiti respirar. Não sei se suportaria ver alguém, além de mim mesma, verbalizando minha própria culpa.
Seus olhos como contas pretas analisavam o ar. A voz acanhada e carregada por medo parecia vinda de algum lugar no chão e não dela, tomando todo o espaço onde estávamos, era angustiante.
— Eu gostaria de ter ido, para dividir a culpa com você e os outros...
— Que outros? — questionou amarga. — Eu estive sozinha naquele lugar.
— Como soube?
— Uma das mulheres que ajudei perdeu seu marido e o pai. Ela chorava e se perguntava onde estava o corpo. Descobri depois que todos estavam magicamente dispostos em caixões e "maquiados" — ela se deteve, fazendo o sinal de aspas com as mãos. — A caminho do cemitério. Fui convidada quando disse que perdi alguém por quem tinha apreço na... — Briseis hesitou, engolindo a seco — tragédia.
— E foi uma tragédia — assegurei.
Ela estava com aquele olhar horrível, o mesmo olhar sem resquícios de esperança que possuía no dia em que a encontrei. E, diferentemente daquela ocasião, agora minhas mentiras eram tão pouco convincentes que se transformavam em pedras na boca quando eu sequer pensava em falar.
Briseis apenas balançou a cabeça.
— Enquanto os caixões eram levados para baixo no cemitério, eu sentia alguns olhares sobre mim. Como se soubessem que a culpa é nossa, entende? Eles sibilavam coisas horríveis, falavam sobre a rainha Aine ser uma puta sádica, sobre Lucinda e os escolhidos. Nos chamavam de fracos e portadores da destruição. Alguns desses eu não a sentia, a sensação... Mas em poucos deles eu notei esta coisa estranha na minha cabeça. Essa que me faz diferenciar quando é você ou quando é Lucinda que se aproxima.
Ela girava uma pequena coisa dourada em seu pescoço, imersa em pensamentos, enquanto o vento fazia seu cabelo farfalhar em conjunto com as folhas das copas das árvores.
Permaneci em silêncio, sem saber ao certo o que dizer. O que ela reportou eram claras demonstrações de infelicidade com o destino que os hanarianos tomaram. Briseis certamente não vira a infelicidade dos humanos e híbridos da cidade também, ela estaria horrorizada.
— O reconhecimento de aura — expliquei, ao invés de falar sobre as guirlandas de alho e as cruzes de ferro. — É assim que encontramos outros hanarianos. E é assim que os Meltas nos encontram também.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...