"As buscas pela embarcação Murmúrio do Velho Chico, desaparecida há uma semana no rio São Francisco, continuam. O rio, famoso por sediar inúmeros desaparecimentos isolados, agora é palco de um acontecimento inédito onde setenta e oito pessoas simplesmente sumiram sem deixar rastro".
— O que pode ter acontecido a essas pessoas? Isso é... assustador — A voz de Carla me chegou aos ouvidos ao mesmo tempo em que eu tentava encontrar sua última peça de roupa perdida na bagunça que minha cama se encontrava.
Parei para olhar a TV na parede do quarto, sintonizada num canal que exibia a reportagem de algum jornal noturno. Quem assistia a telejornais aos domingos?
— Assustador — analisei enquanto recuperava o que acreditava ser sua saia sobre o criado-mudo — é o fato de que Arminda chegará de viagem daqui há algumas horas e nós ainda estamos aqui.
Estendi a saia para ela, que a puxou da minha mão revirando os olhos.
— Seria mais fácil ficar de boa se a gente pudesse, sei lá, denominar tudo isso.
Ela gesticulou, movendo o dedo indicador de mim para si.
— Carla...
Naquele momento, minha vida era uma completa bagunça e eu parecia estar lutando para manter tudo ainda mais confuso. Ela nunca acreditaria quando lhe dissesse que não poderíamos ficar juntos porque, de alguma forma, eu era o herdeiro de um mundo mágico que logo precisaria retornar para casa.
Então, por qual motivo eu estava protelando o fim das minhas vivências humanas? Tanto tempo havia se passado que talvez eu já nem fosse mais tão hanariano assim...
— Eu sei. É complicado... — Ela sorriu, virando em minha direção e engatinhando sobre a cama desarrumada até estarmos com os rostos alinhados. — Fico me perguntando se um dia você me contará quais são esses mistérios que rondam sua vida.
E, então, subitamente, senti seus lábios sobre minha boca, mas não consegui me mover. Para mim, estava claro o quão inconsequente era estarmos ali, enquanto o mundo mágico ameaçava ser completamente destruído. Não era aquele o meu propósito, não era aquele o meu lugar, mas eu não conseguia me desvencilhar da única pessoa capaz de se aproximar através de toda minha confusão.
Carla notou minha imobilidade, grunhindo insatisfeita e finalizando o beijo. Entretanto, fingi não dar atenção e permaneci parado, encarando a TV atrás da garota.
"A região é conhecida pelas lendas que falam de um monstro que devora pessoas. Mas que raio de monstro é esse que come um barco de quarenta metros?" — O sotaque arrastado do entrevistado me trazia à tona algo que eu simplesmente não houvera considerado anteriormente.
Aquilo não poderia ser coincidência.
O prazo para a abertura do portal hanariano estava chegando, o que significava que os meltas e demais seres aliados estariam mais fortes...
— Tô indo nessa, Heitor!
Ouvi a voz de Carla em algum ponto distante.
— Falo com você depois — disse em tom de desculpas.
Ela deu de ombros displicentemente enquanto recuperava a saia e a vestia rapidamente, passando a mão sobre os cabelos loiros desgrenhados, que eu fizera questão de bagunçar minutos antes.
— Ah, não consigo encontrar meu casaco azul — bufou. — Vê se me devolve depois.
Então ela simplesmente pegou sua bolsa que estava jogada no chão e saiu batendo a porta.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...