Enquanto subia as escadas do prédio centenário, minhas pernas tremiam como se eu ainda fosse a mesma humana de alguns minutos atrás. Achava que finalmente poderia deixar de ter medo quando a magia restaurasse e consertasse cada uma das feridas — físicas ou não — que existiam em mim. Mas nunca pude estar tão errada.
Eu ainda sentia o frio tocar os meus ossos e conseguia lembrar dos meus pulmões queimando ao tentar desesperadamente encontrar o ar. Ainda me pegava apavorada ao lembrar dos grandes tentáculos que se enroscaram em meus pés e tentaram me levar para baixo antes que eu me desse conta de que não estava me afogando. A conhecida voz de dentro do meu pingente, as águas obedecendo aos meus comandos, as bestas marinhas fugindo à medida em que eu me erguia, magia borbulhando sob minha pele.
Não sabia exatamente em que momento havia me dado conta de que a Briseis que caíra no mar não existia mais. Poder e magia emanavam de cada poro do meu ser, de forma exponencial, se comparada a todas as fagulhas de força vital que apresentei antes daquele instante. Estranhamente eu tinha completo controle sobre tudo o que fazia, como se já houvesse nascido destinada a desempenhar aquela função.
Embora, na verdade, tudo o que eu mais desejasse fosse poder sumir, não precisar encarar Merrick e sua face doentia. Mas como eu poderia deixar as pessoas que contavam comigo para trás? Como eu poderia não tentar ter coragem?
Coragem.
Mensurei o quão difícil aquela palavra me parecia, enquanto eu subia as escadas do antigo Farol do Recife, segurando a pedra elemental junto a mim. Meu único alento era saber que o terror que eu nutria por Merrick era proporcional ao que ele sentia por mim. Eu só não me encontrava apta para reunir as peças daquele quebra-cabeças, quando sobreviver e proteger os outros se mostrava algo de maior urgência. Não me permiti sequer tentar analisar o significado do que Heitor esteve prestes a fazer quando eu achei por bem pular no mar. Talvez suas atitudes fossem baseadas no fato de que eu era uma humana, prestes a morrer, e ninguém no mundo mágico jamais saberia da minha existência.
Certamente a adrenalina estava deixando todos nós bem confusos.
Os pensamentos inconvenientes foram abruptamente interrompidos quando um frio forte bateu em meu rosto, me fazendo perceber que chegara ao pavimento mais alto do farol.
Antes de dar mais um passo tive o cuidado de guardar o livro de Vornek no tão esperado armário mental. Tudo bem, não consegui abrir o rifind com muita agilidade, mas, se tratando de uma pessoa com dias de experiência no mundo mágico, não me saíra uma vergonha completa.
As ondas do mar pareciam acompanhar as batidas agitadas do meu coração. Ao longe avistei a praça do Marco Zero, onde o último krenger restante aguardava de pé, como um cachorrinho obediente e homens começavam a entrar dentro de um bote no atracadouro.
Homens não, meltas.
Lembrei dos escolhidos que me esperavam fora do farol. Eu tinha certeza de que eles não aguentariam um novo embate. Precisava agir rápido, não nos restava muito tempo.
— Você demorou, criança.
Tive um sobressalto ao ouvir a voz cortante de Merrick, vinda de lugar nenhum.
— E você fugiu — falei, evocando meu recém adquirido poder elemental. Luzes azuis fluíam para fora dos meus dedos, se concentrando em um círculo no ar à minha frente. De todas as mortes que eu teria na bagagem, a de Merrick sem sombra de dúvidas seria a que me causaria menos remorso. — Mas não cometerei com você o mesmo erro que cometeu comigo.
— Não pode me matar.
Dei um pulo ao perceber que a voz estava às minhas costas. Quando virei, me deparei com os olhos negros que tanto me aterrorizaram e tratei de espalmar minhas mãos em sua direção.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...