"A embarcação Murmúrio do Velho Chico continua desaparecida. Hoje faz exatamente seis dias que o barco naufragou no Rio São Francisco sob circunstâncias misteriosas. Nele estavam setenta e nove pessoas, incluindo a tripulação. Trinta e um eram brasileiros, sendo quatro pernambucanos. Dentre todos, apenas uma garota de dezesseis anos foi encontrada com vida. Briseis é filha do famoso casal de empresários Del Mont, que também estava no barco. O corpo de ambos ainda não foi encontrado. A polícia diz que a chance de encontrar mais algum sobrevivente é extremamente remota, entretanto, as buscas por vítimas e pela embarcação continuam."
Eu ouvia o relato do jornalista, falando de mim mesma, de meus pais, enquanto lágrimas incessantes escorriam pelo meu rosto. Não podia acreditar no que estava acontecendo, eu não conseguia cogitar que meus pais estivessem perdidos, afogados, mortos, junto com a carcaça daquele barco. Uma dor quase mortal me ceifava por dentro, não conseguia nem ao menos comer ou dormir. Aquilo não parecia estar acontecendo comigo, aquela não poderia ser eu.
Flashes incessantes do momento em que o barco afundou continuavam passando em minha mente, como um filme assustador que eu não queria ver, mas não tinha escolha. A água que subiu sufocando meus pulmões e afastando minha mãe de mim. As pessoas sendo arrastadas para o fundo do rio por... Pela gravidade. Era aquilo, tinha que ser, não havia explicação nenhuma para os tentáculos que pensei ter visto fazendo buracos na proa da embarcação e matando as pessoas.
A terapeuta havia me dito que era um mecanismo comum naqueles que vivenciavam crises de estresse pós-traumático. Eles criavam maneiras de lidar com traumas indescritíveis. Mas então por que tudo estava tão vívido em minha mente? Por que quando eu fechava os olhos ainda conseguia ouvir a voz da minha mãe gritando por mim?
— Venha cá, minha querida, você quer que eu lhe prepare um bom chá? – perguntou Emma, nossa governanta, enquanto tentava me afastar da televisão.
Balancei a cabeça negativamente.
Não, eu não queria nada além de meus pais, junto comigo, dizendo que na outra semana teriam que sair pelo mundo de novo por questão de negócios. Por que havíamos saído de férias? Por que não ficamos em terra firme no hotel? Eu me perguntava no fundo da minha tristeza.
— Briseis, isto não vai melhorar em nada sua situação. Você precisa comer, vai acabar doente.
— Eu quero ficar aqui Emma, eu preciso estar atenta para qualquer acontecimento, para quando anunciarem que eles foram encontrados. Para quando eles entrarem por ali com suas malas — apontei para a porta, pela qual eu não passara desde o dia em que retornei para casa sem os meus pais.
— Eles não vão... — Emma iria me atingir mais uma vez com aquelas palavras involuntárias, mas torturantes.
— Emma, venha. Eu preciso de ajuda para achar as chaves do carro. Deixe a garota aí ― chamou Abídio, o motorista, para meu alívio.
Emma e Abídio trabalhavam na minha casa desde que eu me entendia por gente. Mas com o sumiço dos meus pais eu não sabia bem qual rumo tomaria a vida deles e, principalmente, a minha. Pelo que sabia, a família de meus pais não era daqui, então, eu teria que esperar as ordens de algum familiar mais próximo que estivesse interessado em tomar conta de mim. Porém, eu rezava para que ninguém reivindicasse minha guarda, afastar-me de minha casa e das pessoas que eu conhecia há tanto tempo era a última coisa que eu queria.
"E agora vamos aos relatos locais..." começou a dizer a voz do jornalista. Antes de ouvir falar de outras tragédias, desliguei a TV e segui em direção ao meu quarto.
Eu estava tão exausta.
Aquela semana havia sido recheada de interrogatórios. Os primeiros foram os interrogatórios da polícia acerca do que aconteceu. Após eu ver que eles não acreditariam na minha versão sobre tentáculos que saíam da água e puxavam as pessoas e sobre a luz brilhante que saiu do meu colar quando estavam prestes a me pegar, decidi mudar de história. Falei em pedras e no barco superlotado, na gravidade arrastando as pessoas para baixo e em como consegui nadar até a margem do rio, mesmo quando eu sequer aprendera a nadar. Depois vieram interrogatórios dos canais de televisão e esquisitões que gostariam de pegar meu relato sobre a experiência de quase morte. Eu nem conseguia contar o número imenso de vezes em que eu desejei estar realmente morta naquele ínterim.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...