26. Contratempos - Briseis

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Fomos rumo à biblioteca e, novamente, ninguém se mostrou presente. Quando chegamos à parte baixa, a tempestade nada mais era que uma tênue garoa. Gotículas de água se acumulavam no topo da cabeça de Daniel e na minha. Embora a água se espalhasse por minha pele, eu não sentia frio, pelo contrário, parecia quente como o inferno. Peguei o casaco de Heitor e coloquei o capuz apenas para não molhar o cabelo.

Por fim, quando entramos na área comercial da cidade, notei o que aparentava ser uma lanchonete aberta e um funcionário que estava lá dentro.

— Está calor, não é? — perguntou Daniel.

— Sim.

— Que tal um sorvete, então? — propôs.

Novos tremores me tomaram. Mordi a língua tentando desviar a atenção da crise de ansiedade para dor física. Não funcionou. O gosto salgado de ferrugem tomou minha boca e Daniel ainda esperava por uma resposta.

— É o melhor sorvete da cidade — insistiu.

Seja forte. Nada vai acontecer. Vá.

Sem pensar, dei um passo adiante, cruzando aquela barreira tênue que me impedia de fazer qualquer coisa com medo de que alguém fosse morto. Na noite anterior eu não conseguia acreditar em minha própria sombra e naquele momento estava indo tomar sorvete com Daniel?

Era como se eu não tivesse mais poder de escolha.

— Olá, Milton! — exclamou Daniel ao chegarmos.

Quando o funcionário se virou, minha visão oscilou novamente. Ou aquilo era uma doença muito grave, ou eu estava de fato louca.

— Oi, Daniel! — respondeu o atendente da sorveteria. Sua pele cintilava, rubra como sangue.

— Oh, céus... — falei puxando Daniel para perto de mim. — A pele dele Daniel... É completamente vermelha.

O garoto primeiramente me olhou atordoado, depois, pude vê-lo tentando dissimular um sorriso.

— Briseis, é uma doença. Não seja indelicada — advertiu.

— Me desculpe... mas é que... — Pensei em falar sobre o garoto azul, mas aquilo me faria parecer louca. — Esquece.

— Qual seu sabor preferido? — perguntou, enquanto me guiava até a mesa mais próxima.

Sentei tentando disfarçar o tremor que tomava minhas mãos.

— Qualquer um de cor laranja — falei. Eu estava sem vontade de escolher sabores. Por mais estranho que pudesse parecer, sabores não importavam mais.

— Laranja? — Daniel perguntou-me franzindo o cenho de forma engraçada.

— É minha cor favorita.

—Ah, sim, um belo critério para se escolher um sorvete — retrucou, indo até o balcão.

Alguns minutos depois, Daniel retornou para a mesa com dois copinhos de sorvete. Ele me estendeu o copo que continha um sorvete laranja, e eu o peguei a contragosto. O atendente mantinha seus olhos fixados em mim, eu podia ver diversão em seu rosto vermelho-sangue ao notar meu desconforto.

— Que sabor seria este? — perguntei, desviando a atenção do atendente sinistro.

— Frutas tropicais — respondeu.

Notei que o seu sorvete era do mesmo sabor que o meu.

— É bom, não é? — perguntou, tentando criar um assunto entre nós.

Anuí com a cabeça, distraidamente.

Como por hipnotismo, meus olhos foram novamente atraídos para o homem. Era como se algo, além do aspecto aversivo de sua pele, prendesse minha atenção. Em algum momento daquilo, eu me senti impulsionada a levantar e ir até ele. Eu quase não podia me conter. Suas íris começaram a crescer mais e mais até tomar todos os seus olhos.

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