30. Impasses - Heitor

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Após ela sair, me levantei da mesa, voltando à sessão onde o livro de Vornek estava oculto e levando-o até a bancada onde Eunice lia uma de suas revistas de fofoca.

— Vai levá-lo desta vez, Heitor? — perguntou por cima do óculos.

— Sim. Tenho algumas pesquisas a fazer... — respondi.

— Ah, todos estão prevendo que o portal está próximo de ser aberto. A magia está mais forte do que nunca. Deve ser uma expectativa muito grande... — falou.

Eunice comentando sobre questões hanarianas era no mínimo esquisito. Por ser uma híbrida, ela nunca conheceria Hanaros. E nem todos os híbridos aceitavam sua condição. Muitos ignoravam a existência hanariana e outros até enlouqueciam.

O que de certa forma me lembrou Briseis.

Eu precisava conversar com Lucinda, a noite seria longa. Se ela fosse de fato uma híbrida, jamais iria até Hanaros. O que, por um motivo não muito aparente, me decepcionou. Eu tive esperança de que ela fosse uma hanariana. Pensei até que... Não. O melhor era que a garota não fosse nem uma coisa, nem outra. Ter qualquer ligação com Hanaros implicava uma força e sanidade fora do comum. Tentei tirá-la, por hora, de minha mente.

— A senhora não imagina como — falei por fim.

— Desculpe-me se parecer invasiva, mas aquela é a Imperatriz?

— É sim — disse, enquanto folheava aleatoriamente as folhas do livro.

Eu sabia que uma conversa com Eunice poderia durar vários minutos. Mas não me importava, ela parecia tão solitária ali.

— Ela me parece diferente do que já ouvi falar — observou. — Quero dizer, todos os hanarianos falavam muito da rainha... Ela não parece exatamente semelhante à rainha Aine.

O livro em minhas mãos subitamente começou a reproduzir imagens dos reis hanarianos em suas folhas amareladas. Eu nunca os tinha visto com tantos detalhes como naquele momento. A lendária rainha Aine possuía a pele negra e cabelos tomados por longos cachos castanhos. O formato de seu rosto, os cílios longos, me lembravam alguém que, com toda certeza, não era Karen. Já o rei era uma figura imponente, sua pele era branca como leite, possuindo olhos e cabelos tão negros como o breu.

Ajude-a — ouvi uma voz cantar em minha mente. Entretanto, tão rápido quanto surgiu ela também se foi e então minha atenção foi direcionada para os outros reis que surgiam nas páginas.

Meus pais.

Um nó se formou em minha garganta. Eu já havia os visto por meio de quadros feitos por artistas hanarianos. Mas nunca no livro de Vornek, nunca de forma tão realista. E apesar de saber que eram meus pais, eu os via como personagens históricos. Não havia um elo de empatia entre a imagem que me era apresentada e eu. Nunca os vi, nunca conheci o som de suas vozes. Mas, ainda assim, eu os amava pelo sacrifício que fizeram por mim.

A rainha Elora, minha mãe, tinha cabelos curtos loiros e expressivos olhos cinzentos. Já o rei Ramon possuía olhos verdes intensos e os cabelos de um marrom cor de terra. Pensei no que Eunice dissera sobre semelhança. E se fôssemos comparar-me com minha mãe eu certamente não seria tido como filho dela. Minha progenitora era tão distinta de mim que logo ficou claro que a diferença que Karen apresentava não era grande coisa. Além disso, todos sabiam que a cor dos cabelos da rainha Traice, a mãe de Aine, eram mais vermelhos que o próprio fogo.

— Cabelos vermelhos são incomuns — falei. — Mas isso não quer dizer nada.

— Quando a outra veio, imaginei que fosse ela... — continuou Eunice, com os olhos focados na revista. — Vocês teriam gostado de se conhecer. Passou a noite aqui há algumas semanas...

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