32. Flor - Briseis

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A primeira coisa que me tomou a mente quando despertei foram os olhos azuis de Daniel e seus cabelos loiros desgrenhados, enquanto ele dirigia e falava sobre o homem que nos perseguia com uma familiaridade assustadora. Como se ele o conhecesse... Não... como se ele soubesse o que aquele cara era.

Por mais uma vez, que parecia ser no mínimo a centésima das vezes, eu acordava de um estado de inconsciência. Mas agora eu não tinha absoluta certeza de exatamente nada! Tudo o que um dia eu já ouvi falar, o mundo material à minha volta... Todas as coisas pareciam um grande nada quando eu me lembrava dos acontecimentos nas últimas horas. Comecei a mudar meu pensamento de: "Eu só posso estar louca" para "Essa porra deste mundo todo está louco!". Era pensar nisso ou aceitar que a antiga eu já não mais vivia; e depois de toda a descarga de adrenalina injetada em mim por aquela situação, eu poderia me sentir tudo, exceto morta.

Como estava acostumada a acordar em situações esquisitas e em lugares desconhecidos, minha mente se adaptara e num piscar de olhos pude fazer um reconhecimento de onde me encontrava: era o meu quarto, na casa de Lucinda. O que significava que, novamente, estava a salvo.

Olhei para a parede. O velho cuco de madeira marcava meia-noite. O som monótono do pêndulo logo levou-me até os meus pensamentos.

Lapsos de memória cintilaram em minha mente quando tentei lembrar de como cheguei até ali. A imagem do homem morrendo na estrada e sendo levado pelo vento era tão vívida que senti que eu poderia ainda estar lá, olhando para aquela criatura enquanto ela se dissipava. Ainda havia o poder que praticamente jorrava de mim. Como se eu fosse uma espécie de feiticeira.

Fiquei aterrorizada ao imaginar que meus delírios estavam progredindo vertiginosamente. Eles não eram apenas visuais, envolviam também todos os meus sentidos, mas não só aquilo. Abarcavam as pessoas ao redor de mim: Heitor, Daniel, o próprio Vale das Estações e a criatura estranha que eu transformara em pó. Seria possível que meu cérebro tivesse tamanha capacidade imaginativa? De que parte do meu subconsciente resgatei aquelas imagens sobre paredões de ouro, poderes saindo da minha mão, pessoas que poderiam me matar sem tocar-me?

Estava tão atordoada que me senti sem forças para apontar justificativas àqueles acontecimentos bizarros, que ocorriam desde que eu houvera chegado na estranha cidade. Na realidade, se eu parasse realmente para analisar, toda a minha vida era um amontoado de coisas bizarras.

Embora sentisse que pudesse me desfazer em lágrimas, eu não as tinha mais. De certa forma, também não queria mais chorar, não queria mais me curvar diante todos aqueles problemas, dúvidas, incógnitas e receios que me assolavam. Eu estava viva ainda, não estava? Algo ou alguém me mantinha ali. Do contrário, o que explicaria as mortes que acompanhavam minha passagem, mas eu permanecendo intocada? Era como se tudo ao meu redor ruísse e, em meio a todo o caos, eu ainda estivesse de pé.

Subitamente, tornei a lembrar de Daniel e da forma com que ele foi mantido preso dentro do carro por aquelas sombras negras emanadas do homem. Meu coração entrou em descompasso. Um nó denso se formou em minha garganta enquanto eu deduzia que fora responsável pela morte de mais uma pessoa que estivera muito próxima a mim. Onde ele estaria? Não poderia ser...

O medo de levantar, perguntar a alguém e receber a resposta que eu temia me tomava. Inspirei profunda e lentamente e decidi que precisava de um pouco de ar. Ao descer da cama meus pés tocaram o carpete escuro no chão e pequenos formigamentos ascenderam por minhas pernas. Esperei para ver se iria me sentir desestabilizada. Surpreendentemente eu aparentava estar muito bem. Ainda que anteriormente, quando estive prestes a desmaiar, a sensação fosse de que minha vida estivesse sendo extraída de mim. Quando me certifiquei que conseguiria andar normalmente, caminhei até a porta de vidro que dava para uma pequena varanda na lateral do quarto.

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