— Isso não pode ser verdade... — Os olhos verdes de Heitor estavam fixos no ponto acima da minha cabeça. Incredulidade estampava seu rosto misturado a um genuíno medo.
— Eu os ouvi... — lamentei, o temor cravando suas raízes em mim. — Ontem à noite.
Virei buscando encarar a criatura, como que para convencer-me de que aquilo era real.
Estava abrindo e fechando as mãos ao lado do corpo, nervosa. Eu desejava em cada fio de cabelo que tudo fosse realmente mentira. Que aquelas coisas não estivessem atrás de nós, que eu não houvesse sido arrastada noite adentro e deixada a par de tudo, de repente, e sem cerimônias. Mas claro que após o ocorrido na noite passada, a sombra da possibilidade daquilo ser apenas invenção da minha mente quebrada ainda pairava sobre minha cabeça. Talvez estivesse muito distante e tênue como penas roçando meus pensamentos, porém, ainda permanecia lá, me invadindo subitamente e ao mesmo tempo em que eu tentava processar a imagem horripilante à minha frente.
Enquanto o krenger batia ferozmente no muro invisível, seus dentes brilhantes, afiados e letais rangiam quando as quatro fileiras superiores iam de encontro às inferiores — simbolizando a frustração do monstro ao não conseguir adentrar na cidade e ter mais pessoas para aniquilar. Por alguns segundos, que mais pareceram horas, eu fiquei paralisada encarando aquilo, que pelas palavras dos tais magos da noite anterior, eu sabia se chamar Krenger. Analisei o rastro de sangue que se estendia atrás da criatura: as vísceras das pessoas inocentes que se depositavam em montes na estrada; o pelo denso e oleoso coberto por sangue vermelho em algumas partes e marrom em outras, coagulado. Eu deveria já estar acostumada com o horror, o odor pungente do sangue, a desolação... Mas ainda doía como se fosse a primeira vez. E doía um pouco mais agora. Porque mesmo envolta pela magia de criaturas de outro mundo, a desolação e horror ainda se faziam presentes.
Só que mais fortes.
— Eu queria poder ter feito algo antes — murmurei, para ninguém em especial.
Lembrei do que aconteceu depois que expulsei Heitor do quarto. Da raiva se apoderando de em mim, da falta de autoconfiança e frustração. De sentir que não poderia acreditar em meus sentidos, quando anteriormente havia recuperado uma parte ínfima da capacidade de confiar em mim. Afinal, se uma pessoa que parecia tão importante naquele contexto, me dizia que eu estava inventando coisas, eu deveria acreditar. Não deveria?
E foi o que fiz.
Mesmo quando encontrei com Daniel no hall da casa naquela manhã, me mantive calada, e não mencionei Krengers ou magos. Fiquei em silêncio à medida que o garoto tagarelava sobre como estava feliz em saber que eu era como todos os outros. Mesmo quando ele pareceu notar algo de errado e perguntou se estava tudo bem enquanto íamos a pé para a escola, não falei coisa alguma. Então, mais uma pessoa havia morrido frente aos meus olhos e um monstro ameaçava matar centenas delas. E, apesar de estar envolta em algo sobre magia e poderes sobrenaturais, eu ainda era como um pedaço de nada, impotente.
— A culpa foi toda minha. — A voz de Heitor interrompeu meus pensamentos. — Eu subestimei o que me disse e agora estamos pagando por minha arrogância.
Olhei do monstro para o garoto. E, embora quisesse a todo custo suscitar a raiva que sentia anteriormente, não consegui. Mesmo que Heitor fosse um imperador poderoso (o que quer que aquilo significasse) e que possuísse um grande futuro pela frente, naquele momento, ele não parecia mais que um adolescente assustado, como qualquer um de nós: vulnerável e um tanto humano. Embora se esforçasse para esconder o seu medo, eu podia senti-lo.
— Não há muito o que fazer agora, além de evitar que mais pessoas morram — falei, tentando escolher as melhores palavras. — Você... melhorará.
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Vale das Estações
FantasyHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...