40. Pesos - Heitor

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Como? — Daniel correu os olhos entre nós. — Você está de brincadeira, cara. Isso não pode ser sério.

Se eu conseguisse me ver de fora, com certeza minha expressão seria do mais completo desamparo, enquanto transmitia a todos o que acontecera.

Eu bem gostaria de poder dizer que não estava falando a verdade. Mas possuía a mais absoluta certeza de que o livro havia sumido. Não podia senti-lo em nenhum lugar da biblioteca. O espaço entre a estante no qual ele ficava jazia destruído, não havendo uma folha inteira naquele lugar. E, entre pensar que um livro com eras de idade fora simplesmente fatiado ou que o Krenger veio até a cidade para roubá-lo... A segunda opção se mostrava bem mais cabível.

Só conseguia pensar no quanto Vreida nos odiava. Faltava um dia para o solstício de inverno e nós havíamos simplesmente perdido um dos principais itens para conjurar o portal!

— Então foi por isso que ele veio até aqui? — Karen perguntou, com uma mão paralisada sobre a grande queimadura que guardava a forma das mãos de Briseis em seu pescoço.

Aquilo foi bem estranho.

Porém, o roubo do livro de Vornek não me dava tempo de atentar para um problema menor.

— Provavelmente — A voz de Daniel estava baixa, como se ele temesse atrair a atenção do monstro. — O que os Krengers iriam querer com o livro de Vornek?

— A pergunta — Briseis olhou para Daniel, sua expressão carregada de tristeza enquanto falava —, é quem o enviou. Ou esse livro teria mesmo alguma serventia para eles?

Todos nós caímos num silêncio profundo, incapazes de verbalizar as dúvidas suscitadas ali. Fazia todo sentido. Krengers só se importavam em matar e comer. A não ser que fosse para usar as folhas como guardanapos, o livro de Vornek não lhes seria útil.

— Foram os Meltas  — ela continuou, perante nossa falta de palavras. — Vocês não precisam me dizer. Mesmo sendo tão nova nessa... coisa toda de Hanaros, eu os vi e ouvi. Preciso de alguém que me explique essa palhaçada toda ou eu posso continuar sendo um peso inútil e expondo mais pessoas a isso...

Briseis girou o dedo, mostrando a situação da biblioteca. Olhei ao redor, tomando consciência do tamanho do estrago. O lugar que expressava calma, silêncio e paz, mas que agora não passava de um amontoado de escombros, livros e... sangue.

Quando entrei no lugar devastado, eu apenas voei em direção a estante que guardava o livro e a encontrei vazia, então voltei para a companhia dos outros e contei nossa perda. Nesse meio tempo, eu esqueci completamente da velha que Briseis procurava. Aquela pela qual ficamos lá em cima e quase tivemos nossos ossos separados da carne. Contudo, ela estava lá, deitada sobre uma poça de sangue, com três grandes cortes lhe revirando as entranhas.

Lutei para impedir que o vômito me subisse a boca quando o cheiro metálico de sangue chegou até mim.
O corte em minha perna, que estranhamente se tornara uma linha fina, começou a latejar como se reconhecesse seu causador nos cortes da idosa morta ao chão.

— O que... — sussurrei, enquanto me aproximava aos poucos do corpo no chão. — Pensei que ela houvesse conseguido.

— Ela tentou, mas não foi forte o bastante. Quem de nós seria, afinal? — A voz de Briseis estava amarga, ela virou de costas, evitando olhar em nossa direção. — E agora a neta dela está lá embaixo, esperando que eu retorne com sua avó. Avó que ela nunca mais verá. Mais uma morte para a minha lista de remorsos.

As palavras de Briseis na noite em que me contou as desventuras de sua vida, retornaram a minha mente como se acabassem de serem ditas: a caminhoneira que lhe ajudou mas fora morta por Alane. A forma como seus olhos se enevoaram ao lembrar do acontecido. No fundo da minha consciência havia uma voz que me censurava por não ter sido capaz de protegê-la de passar por aquilo mais uma vez, quando eu havia prometido que nada a perturbaria.

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