21. Coincidências - Briseis

600 86 290
                                    

Se eu acreditava em anjos? Bem, naquele momento, era impensável para mim ter uma resposta diferente de sim.

Nos últimos meses minha vida sofrera inúmeras reviravoltas, eu havia me deparado com tantas pessoas ruins e traiçoeiras, visto a morte de perto tantas vezes quanto se era possível e, ainda assim, sempre parecia haver uma esperança. Na verdade, em determinado momento eu não possuía a certeza de mais nada. Se eu estava viva ou não, se toda aquela dor era real, se seria possível juntar os cacos de meu coração e seguir em frente.

Tinham me tirado tudo. As pessoas não estavam seguras próximas a mim. Minha sanidade quase fora perdida. Eu fui atingida, massacrada e magoada de todas as formas possíveis. E, ainda assim, o pulso pulsava. Tal como aquela música dos Titãs que meu pai adorava. 

Eu deveria estar louca e me martirizar a cada segundo do resto da minha existência por haver uma criança com leucemia lá fora e sem mãe exclusivamente por minha culpa. Deveria lembrar que fui mantida numa cela fétida e escura por mais de um mês. Levado tiros, recebido veneno e que agora meu coração estava tão incólume quanto um alvo no meio de um tiroteio.

Mas tudo que eu pensei em fazer, depois de conversar com uma das únicas pessoas capazes de me dar novamente esperança, foi agradecer. Eu ainda estava viva e em segurança.

Embora nunca tivesse ouvido falar desta minha tia, ela estava lá. Pelo que me explicara havia lutado por mim, apesar de possuir todos os motivos para desacreditar. Não me restava mais nada, eu não tinha em que me apegar. Eu precisava confiar... Embora a possibilidade de ver mais alguém morrer me deixasse apreensiva, existia algo naquela cidade que me fazia esquecer de todos os perigos lá fora. Como se fosse um porto seguro, um lugar acima de todo o mal.

E, além de tudo, existia o garoto.

Seu rosto me era familiar como se já tivéssemos nos visto alguma vez. Quando meus olhos se abriram e fixaram-se em suas íris verdes, eu encontrei segurança.

Era bem estranho. Não nos conhecíamos, porém, quando eu olhava para ele podia ver o quanto se preocupava comigo. Por determinado momento, apenas ele pareceu verdadeiro, incapaz de me machucar. Eu tinha todos os motivos para estar com um pé atrás, mas não conseguia ver nada de ameaçador na forma mansa com que falava e na maneira que tentava me convencer de que tudo estava bem quando ao meu redor eu só via trevas.

Logo, me senti à vontade, apesar da dor que todas as lembranças me traziam, para contar-lhe por tudo que passei. E a cada letra que minha boca expelia eu notava aquilo cada vez mais longe. Como se estivesse sendo recoberta por uma camada impermeável, fazendo com que nada mais pudesse me atingir. Embora eu ainda pudesse sentir cada trauma, cada bala perfurando minha carne, a falta de cada uma das pessoas que me foram tiradas. Mas eu estava à salvo naquele momento e aquilo era o que, por ora, importava.

— Como se sente, querida? — perguntou Lucinda enquanto eu cortava legumes para o almoço ao seu lado.

Minha mente pensou em dizer todos os adjetivos possíveis para nomear uma dor que, apesar de não matar, permanecia ali me torturando. Mas aquilo seria crueldade com minha recém-descoberta tia, que já sofria tanto com sua própria culpa.

— Eu... Estou bem — menti.

Conversar e confiar nela também não foi difícil. Seu rosto me parecia igualmente familiar. Na realidade, tudo ali me trazia espécies de Déjà vu. A casa, a cidade que eu via pela janela do quarto onde estava, a alameda que descia a imponente colina abaixo, ladeada por árvores de copas vermelhas. Tudo me passava a sensação de que eu já estivera ali antes. Bem, talvez houvesse algum sentido.

Lucinda era uma tia de terceiro grau minha. Logo, nada mais natural que meus pais terem me levado até lá no passado para uma visita. Eu só não conseguia entender por que eles nunca me falaram sobre ela e como demoraram tanto para me encontrar e me entregar a essa tia. Ela me disse que quando soube do desaparecimento dos meus pais, tinha consciência de que era a única pessoa que poderia ficar comigo. Lucinda ainda havia tentado obter minha guarda, mas fora tarde demais. Em pensar que eu poderia ter me safado de tudo aquilo, ter safado a pobre Rosilda que apenas quisera ajudar-me... Tratei de empurrar este pensamento para fora de minha mente. Eu sabia que estava sendo segurada e mantida de pé apenas por um fino fio de seda, que a qualquer minuto poderia romper-se.

Vale das EstaçõesOnde histórias criam vida. Descubra agora