Eram quase quatro horas da madrugada do domingo e eu não me sentia nem um pouco tentado a levantar, muito menos permanecer deitado.
Embora naquela noite nem mais um grito de Briseis tenha ecoado, não pude dormir.
Após o treinamento na arena, as coisas pareceram ainda mais confusas. Zínia era um ser detestável, que ameaçara alguém incapaz de se defender, como uma covarde. Eu a odiava com toda a força existente em meu corpo. Queria queimá-la até que não restasse nada mais que um punhado de cinzas, entretanto, jamais poderia negar que em um ponto ela estava certa: logo eu teria que ir para Hanaros juntamente com os outros integrantes da missão, mas Briseis permaneceria e seus pesadelos permaneceriam também. Eu precisava encontrar uma forma de me afastar o quanto antes. Seria menos danoso... para ambos.
Então, naquela noite, não pude, nem consegui, permanecer em seu quarto. Mesmo que eu pudesse ouvir no outro quarto o pulsar do seu coração frenético e soubesse que ela não estava dormindo, não tive forças para vê-la. Minha mente fervilhava.
Me revirei na cama tentando bloquear aqueles pensamentos. Porém, era impossível. A paz só reinou em minha mente quando, enfim, consegui dormir.
Mesmo quando acordei algumas horas depois, com o juízo um pouco mais descansado, nada me tirou da cabeça as coisas que começariam a acontecer, ou melhor, que já estavam acontecendo. A abertura do portal hanariano deveria estar próxima e os seres refugiados no mundo humano começariam a tentar nos encontrar. Mas não só isso: nós não tínhamos ideia de como o portal seria aberto, logo, estaríamos à mercê do que quer que quisesse nos acompanhar.
Levantei da cama em direção ao banheiro. Lavar o rosto talvez me ajudasse a sair do estado de torpor em que me encontrava. Contudo, mesmo após tudo aquilo, eu ainda me sentia mal.
Minha barriga roncou como se possuísse vida própria. Quem sabe aquela angústia fosse só meu organismo tentando encontrar uma maneira de me dizer que eu estava com fome.
Após um bom tempo, percebi que tudo estava silencioso. Silencioso demais.
Era evidente que não havia ninguém em nenhum dos quartos. Desci as escadas vagarosamente e a sala de estar também estava vazia. Lembrei que naquele dia Lucinda havia convocado uma cúpula para debater com alguns habitantes hanarianos remanescentes a demora na abertura do portal. Mas onde estaria Briseis? Seria possível que ela tivesse finalmente conseguido sair de casa?
Subi as escadas que davam para os nossos quartos mais uma vez. Entrei no quarto, que nos últimos dias foi quase meu também, e me surpreendi ao constatar que ela não estava. Rezei aos grandes para que estivesse com Lucinda. Ela precisava estar. Não havia outra opção. Os gritos e tremores que tomavam seu corpo quando tentamos descer até a parte baixa da cidade juntos eram uma boa lembrança de que ela não sairia de casa se não estivesse confortável.
Os gritos de Briseis me deixavam aflito, mas o seu silêncio e ausência agora preocupavam muito mais. Fiquei angustiado ao imaginar que ela percebera minha impaciência na noite anterior ao esperar que o ataque de pânico a deixasse. Mesmo que eu não tivesse muito o que fazer. Precisava encontrar uma forma de conseguir abandoná-la. Mais uma vez eu estava naquele dilema, com outra humana.
Espere, era totalmente diferente.
Carla era alguém que eu sabia da chegada, que entendia que estava em minha vida porque escolhi, para qual me preparei para deixar desde o dia em que nos conhecemos e que havia me traído. Briseis, por outro lado, chegara de repente. Era a pessoa mais quebrada que já conheci e, ao mesmo tempo, a melhor delas. Eu não seria tão forte se estivesse em seu lugar, certamente não. Ver sua força me inspirava, me fazia querer ser algo assim também.
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Vale das Estações
FantastikHá dezessete anos, num país em que poucos acreditariam haver magia e as lendas eram vistas como tolices para assustar crianças, surgiu um lugar fantástico onde as estações coexistiam e as histórias se tornavam reais. Após uma série de coincidências...