46. Desejos - Briseis

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Poucos minutos haviam se passado quando terminamos de cruzar a ponte Maurício de Nassau, deixando para trás as grandes estátuas de ferro que descobrimos serem, na verdade, hanarianas. Para nossa felicidade, as outras duas gigantes de ferro, que tinham a forma de Atenas e Deméter, realmente não passavam de metal inanimado.

Achei engraçado perceber que depois de Heitor contar sobre a missão na qual provavelmente estava inserida, eu senti como se houvesse um novo propósito em minha vida. A mesma expectativa que queimava no peito dos poucos hanarianos que eu já encontrei, também queimava em mim. Agora eu possuía algo para seguir em frente e amenizar as velhas cicatrizes. Uma esperança, ainda que tênue, de descobrir o que realmente aconteceu com meus pais.

Aqueles que você acredita serem seus pais. Sibilou uma voz cruel em minha mente, mas tratei de suprimi-la.

Eu andava ligeiramente atrás de Daniel, em silêncio. Não queria correr o perigo de ficar sozinha para trás novamente, mas também não queria ter que conversar com o garoto. Vez ou outra me pegava analisando a forma como a água escorria por seus cabelos loiros, mas logo tornava a focar minha atenção nas ruas do Recife mortalmente silenciosa.

Olhei sob a garoa persistente para uma fachada pintada de amarelo-sol e as inúmeras janelas quadradas e redondas com molduras brancas que compunham o prédio de um antigo convento, construído no século XVIII, mas que agora nada mais era que ruínas restauradas transformadas em um quase shopping. Particularmente, não curtia aquela ideia de misturar algo centenário com arquitetura moderna, mas o prédio imponente tinha muita graça quando visto das outras ilhotas do Recife.

Passamos cautelosamente pelas ruas sinuosas, parando a cada minuto para avaliar se não estávamos sendo observados ou seguidos.

Me permiti ficar um pouco para trás, enquanto os outros analisavam com cuidado a rua estreita por onde andávamos naquele momento. Karen guiava Heitor pela escuridão, sussurrando vez ou outra alguma coisa em seu ouvido. Daniel permanecia em silêncio e, do ponto onde eu estava, logo atrás, podia ver delimitar-se sob a camisa os músculos tensos das suas costas.

Deixei meu pensamento vagar e imaginei, que se contornássemos pelo caminho mais longo, certamente esbarraríamos nas majestosas igrejas coloniais, ladeadas por dezenas de prédios que possuíam uma arquitetura típica dos anos 50 e que haviam tomado o espaço dos centenários sobrados portugueses e holandeses. Se aqueles fossem outros tempos, e se houvéssemos chegado mais cedo, ainda pegaríamos os resquícios do caldeirão em ebulição que era o centro comercial. Com seus ambulantes e lojas atuais que contrastavam amplamente com as antigas construções que se erguiam bem acima delas.

Caso estivéssemos em meados de fevereiro, seguindo pelo mesmo caminho que tomávamos, seria possível ouvir o retumbar contagiante dos tambores do maracatu e o som dos trompetes das orquestras de frevo. Esbarraríamos com centenas de turistas, em suas roupas chamativas e sombrinhas coloridas. Eu levaria Heitor e Daniel para conhecer um bar temático que havia ali perto. Poderíamos comer anéis de cebola empanados, ouvindo Queen e Red Hot Chili Peppers, enquanto ficávamos a par das aventuras amorosas de Daniel daquela semana. Então depois eu pegaria um táxi para casa e encontraria meus pais dormindo. Haveria uma mensagem da minha mãe de horas atrás perguntando se eu estava me divertindo, e quando eu deitasse a cabeça em meu travesseiro saberia que tudo estaria bem no outro dia.

Meu coração se contorceu com uma dor fina e incômoda que me fez notar como eu sentia saudades de cenas que nunca veria, lugares que nunca iria e portas que jamais seriam abertas.

Quando tropecei em um crânio largado no chão, com alguns pedaços de pele aderidos às órbitas vazias, fui obrigada a acordar do devaneio. Logo ao lado se acumulavam outras partes negras e indistinguíveis — que pelo cheiro pungente de putrefação, identifiquei como o resto do corpo pertencente àquela cabeça.

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