A Versão da Vítima

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A Versão da Vítima


A mesma música martelava em minha cabeça incontáveis vezes. Segurei no braço da minha irmã um pouco mais forte porque sabia o que estava prestes a acontecer.

O bolo marcava onze velas, era a primeira vez que meu número preenchia mais do que as duas mãos.

Quando fechei os olhos antes de soprar as chamas, o sangue escorreu denso e quente pela lateral do meu corpo e os respingos cobriram meu rosto. Senti o toque em Sofia se desfazer e o corpo de meu pai que surgiu na minha frente sumiu de vista um segundo após abrir.

A bala atravessou seu abdômen e raspou em minha pele, tão suave e letalmente. Cores preencheram minha visão dizendo que eu recordaria aquele momento como a imagem que não sairia da minha mente ao fechar os olhos. E por anos foi assim.

Soa assustador ser uma criança órfã, uma que viu os pais morrerem na própria frente. Não é como um filme em que eu me torno uma justiceira mascarada, uma marca como essa perdura por um longo tempo, mas na vida real você deve crescer o suficiente naquele instante porque alguém agora precisa do seu cuidado. Sofia. Seu choro alto me fez acordar, mas seu pequeno corpo não se encontrava em meu quarto. Ao invés disso, aparelhos apitavam e uma conversa baixa me incomodava. O primeiro rosto que vi foi o de Keana, que como sempre, não suportou a minha vista. "Levanta, praga. Precisamos ir." E por alguns anos eu morei com aquela criatura.

A verdade é que minha família sempre se escondeu nas sombras e não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso. A fascinação do meu pai por relógios o encorajou a abrir uma pequena loja no país em que nasceu, apenas consertava os antigos, daqueles de madeira que aos poucos deixavam de existir, eu ainda não existia, mas agradava-me ouvir as histórias. Um certo dia, um senhor rico surgiu com uma dúzia de relógios de pulso, alguns femininos, que alegava ser de sua esposa e outros de prata e diamantes, os olhos do meu pai arderam em constante excitação vendo aqueles objetos implorando por suas renovações.

O homem passou algumas horas na loja, conversavam sobre tudo até chegar ao assunto certo. O questionamento veio de meu pai, que muito curioso pela empolgação, permitiu-se soltar as palavras. — Peço perdão por perguntar, meu senhor, mas com tantos milhares de dólares em minha bancada, ouso questionar. O que faz para conquistar essa fortuna?

O velho bem ajeitado de terno e gravata pigarreou uma ou duas vezes antes de olhar para trás e ter certeza de que estavam sozinhos. — Sou da indústria farmacêutica. — Falou simplesmente.

— E como começou, se me permite a curiosidade.

Ele sorriu de forma genuína e tirou uma sujeira da lapela antes de se recostar no balcão

— Lei seca. Bom, meu pai começou dessa forma. Quando eu segui carreira, a mercadoria se tornou distinta.

— Quando diz farmacêutica, — Breve pausa. — se refere ao que não pode ser vendido regularmente. — Meu pai não gostou da ideia e contorceu o nariz. Não admirava o dinheiro sujo.

O homem estalou a língua e deu de ombros. Mais uma vez olhou para trás por cima do ombro.

— Você sabe, um homem tem que fazer o que puder para sustentar sua família. — Fungou e encarou no fundo dos olhos do meu pai. — É uma questão de palavra, meu amigo, se você... que Deus te livre, mas se você cair duro agora no chão e te levarmos ao hospital, você receberá todos os medicamentos que garantirão a sua vida. Muitos deles possuem esse componente, você sabe. — Deu de ombros mais uma vez e estalou a língua, parecia mascar um chiclete fantasma. — É uma questão de palavra, o resto não muda. Uma dose ali, uma dose aqui para a sobrevivência de um homem, um benefício que se colhe. Se não tiver a mim para vender, terão outros. A palavra, essa palavra, a lei, o que está contido nela, está na lei que você pode usar esse medicamento para sobreviver à dor, o que é legalizado, correto? Mas meu pai tomou lucro dessa palavra e faço a mesma coisa até que o dia chegue e a palavra não seja mais o limite de nossas escolhas.

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