Terceira Parte
Fim de Jogo
45
O Lutador
Derrick Hamilton foi um boxeador com uma carreira nada promissora. Aos vinte e três anos não tinha dinheiro nem ao menos para comprar uma regata que não estivesse rasgada. A luta não acontecia só no ringue, mas fora dele também. Normani nunca gostou de falar sobre os pais e Lauren sabia disso. Era um passado esquecido, poucas palavras trocadas sobre ele, nada muito certo, nada em seu equilíbrio vital. Tudo era confuso, perdido. Mas existiu o problema com álcool.
Desde cedo Normani passava seu tempo na academia em que o pai lecionava jovens aspirantes a iludidos. Ouvia os palavrões, gritos e conversas desaforadas. Mas também aprendia as lições. Quando os alunos iam embora e o pai guardava os equipamentos, a pequena colocava suas luvas sujas e rasgadas e investia em fracas pancadas no enorme saco pendurado por dois pinos no teto.
Ao ver o interesse da filha, o pai a incentivou a aprender golpes e movimentos, mas o principal sempre foi ensinado nas palavras que se mesclavam com o cheiro de cerveja barata e vodca.
— Eles tentarão te derrubar. — Duas pancadas de esquerda, a garota prestava atenção. — Se estiver sozinha na rua, se estiver à noite, no frio, onde quer que esteja. — Três socos seguidos no objeto pendurado que balançava. — Sempre existirá uma sombra, pronta para te derrubar. — Um chute com a perna da qual o joelho já não mais funcionava como deveria, seguido de um urro de dor e o olhar penetrante em seus olhos. — Sempre existirá alguém para te vencer. E o que você faz quando isso acontece?
— Me finjo de fraca.
— Como disfarce. — O pai completou soltando as luvas e mancando até o boneco de pancada. — E?
— Posso agachar e pegá-lo pelo joelho.
— Derrubá-lo no chão junto com você. O que eles esquecem de usar?
— As pernas! — Ela se lembrava e observava o pai com atenção.
— E quando ele estiver no chão?
— Não deixo levantar. Agarro pelo pescoço!
— Agarre pelo pescoço. E se não for o suficiente?
— Se eu não for forte o suficiente. O que for mais vulnerável. — Um ritmo de batidas se iniciou, desde o abdômen do boneco até a cabeça e com velocidade e de forma certeira, o pai o atingia. Era como uma melodia, contada, cada passo, cada golpe, a garota prestava toda atenção decorando cada palavra e aprendendo o que aquilo significava.
— Sua vez. — Ele a convidava depois de suado e já entorpecido, incentivava a criança a golpear o boneco.
Quando a mãe descobriu, proibiu que a garota colocasse os pés na academia, não queria uma filha violenta que convive com homens o dia todo. O pai não gostou, queria ensinar a filha a se defender, era seu único intuito já que sabia que as ameaças da vida vinham de toda parte.
"Quem sabe ela pode ser uma lutadora um dia." Dizia. "Assim como eu fui."
Mas a esposa revirava os olhos descontente, sabendo que ele nunca havia sido um lutador de verdade e incentivava a filha a fazer aulas de dança, já que poderia ser mais promissora assim. Normani adorava as aulas, mais do que gostava de ficar na academia velha do pai. Porém o desejo de aprender o que ele ensinava era mais forte do que seu conforto, por isso, no período da tarde em que a mãe trabalhava, a menina saia da escola e ia direto ao encontro do pai.
No período em que garotos um pouco mais velhos aprendiam jiu-jitsu com outro professor. O pai a ensinava a dar socos mais fortes e criar um equilíbrio mais resistente, para que ela não caísse, mesmo desprevenida. "Tem que usar as forças das pernas." Ele incentivava, ajudando ela a fazer mais exercícios, como pular corda e levantar os pesos da academia.
Aquilo não era feito para uma criança e olhares feios eram enviados para os dois que pareciam sempre estar na mesma bolha de preservação.
Normani pequena pensava no dia em que teria que usar o que o pai ensinava. Pensava também em um dia ser uma lutadora. Não gostava daquelas lutas de televisão, achava-as fracas, preferia aquelas das quais o pai participava, essas sim eram mais intensas e tinham mais sangue, mais ossos quebrados. Ela não relacionava a dor com o esporte.
Mas fora daquele lugar surrado, a realidade perdia sua essência e os anos se passaram. A menina tinha agilidade, dançava muito bem, mas voltava para casa com pequenos hematomas pelo corpo. Até que um certo dia na escola, um dos garotos de sua turma decidiu comentar sobre a aparência de seu pai bêbado que passara a buscá-la todo dia, esperando por sua garotinha na frente dos portões, com sua camiseta cheia de suor e shorts rasgado.
— Aquela orelha. — O garoto fez uma careta. As crianças achavam abominável a deformada aparência no rosto do pai da menina, mas Normani sempre achou fofo, engraçado. — Aposto que deve ser genético. Credo!
O cabelo da garota sempre escondia as suas e ela o encarou irritada.
— Por que não vem aqui dar uma olhada!
As crianças deram risada quando ele se virou e disse: — Eu não, vai que é contagioso.
Normani toleraria que rissem dela, mas não se estivesse relacionado com o seu pai. Sempre sentiu muito orgulho dele e não deixaria ninguém fazer isso ser diferente.
As palavras ecoaram em sua mente "Agarre pelo pescoço." Quando a garota se ergueu da cadeira. A professora lecionava a aula sem saber o que acontecia e as crianças ali ao redor diminuiam a risada e a encaravam com curiosidade até que um forte e barulhento soco atingiu o rosto do garoto e ela pulou com as mãos na direção de seu pescoço.
— Nunca mais fale dele!
Berrou quando caíram no chão e deu alguns chutes antes da briga ser apartada.
Em casa, seu pai orgulhoso ouvia o que a mãe tinha a dizer enquanto Normani espiava do lado de fora da porta.
— Você a abandonou e agora quer transformá-la em um monstro.
— Eu nunca abandonei ela.
— Mentiroso! Você foi embora assim que soube que eu estava grávida, pegou tudo e foi… com aquela mulher! Seu filho da puta! Você sabe que eu sei e mesmo assim, quando voltou rastejando para mim, eu te acolhi! A menina já tinha quatro anos. QUATRO ANOS DA VIDA DELA QUE VOCÊ PERDEU! E agora quer transformar ela nisso?! Uma garota troglodita que bate nos colegas de turma?
— Você ouviu o que aquela criança falou?
— Ouvi, Derrick. Mas ele não teria dito aquela merda se você tivesse um emprego de verdade e ela não teria feito aqui se você fosse um pai de verdade!
Normani nunca mais foi para a academia do pai. Ele deixou de buscá-la na escola e meses depois da briga, sua bebedeira se intensificou, até que em uma noite, alterado, bateu na própria esposa e foi embora mais uma vez, deixando sua filha, dessa vez para sempre.
A única lembrança que persistia em sua mente eram suas palavras. Aquelas que ele tanto repetiu para que se defendesse.
É possível que a única família de verdade que ela encontrou depois daquilo, foi Lauren. Desde o momento que a viu, sabia que a amaria para sempre e com certeza o fez, mas tudo muda e óbvio, conforme os anos se passam, novos desafios vão surgindo… A luta constante que existe fora do ringue, talvez Normani realmente tenha seguido os passos do pai.
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STALKER
FanfictionVocê já teve a sensação de ser seguida? E se na verdade isso não for só uma sensação? E se tiver realmente alguém te perseguindo? O tempo todo, vendo as suas ações, comandando a sua vida. Você sentiria... medo? E se você não for a única peça nesse...