Prólogo

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15 de março de 2013, Pedra Branca, 10 anos antes

Uma frígida garoa caía sobre Pedra Branca naquela madrugada, precedida pela neblina rasteira que descia da serra até o centro da cidade. Era uma noite bonita, todavia. Os raios de luz da lua ganhavam vida por entre as nuvens nubladas e pediam passagem por entre as frestas da janela de Samira.

Era quarta-feira, dia de semana, meia noite e quatro. Samira devia estar dormindo. Entretanto, a garota amava aquele clima. Assim que as primeiras gotas de chuva caíram, ela pulou da cama e preparou um chá de camomila, na surdina. Caçou na estante da sala um livro de aventura e enfurnou-se debaixo das cobertas com uma lanterna, cobrindo-se até o topo da cabeça. Se soubesse que aquela seria a última oportunidade de uma noite bem dormida que teria em anos, teria aproveitado.


Uma e quarenta e cinco da manhã. A porta do quarto escancarou-se, batendo contra a parede. Samira soltou um grito esganiçado de pavor, preparada para a maior bronca de sua vida. Ela fechou o livro, desligou a lanterna e puxou o cobertor de cima da cabeça, bagunçando os cabelos arruivados. As desculpas estavam na ponta da língua, quando viu a feição que a esperava.

– Pai?

Beto Sabino estava branco como a noite, ainda mais do que a pele alva exibia nos dias corriqueiros. Tremia da cabeça aos pés. Os olhos eram duas apavoradas órbitas que a fitavam. No colo, o filho Benji, que começara a chorar com o desalento do pai. Na outra mão, uma arma.

Samira congelou. Seu pai atravessou o quarto em um segundo e a arrancou da cama, com a mesma mão que segurava a arma. A garota quis gritar. Ela nem ao menos sabia que ele possuía uma arma de fogo debaixo do teto de sua casa. O fato de estar empunhando-a, apavorado, às duas da madrugada, fez a filha de catorze anos chorar.

– Pai! O que está acontecendo?!

Beto a puxou quarto a fora, rumo ao quarto do filho do meio. Escancarou a porta com o mesmo alarde. Andy, sete anos mais novo que a irmã, já estava de pé, os olhos esbugalhados transbordando medo pelo barulho.

– Vamos – foi tudo o que Beto conseguiu dizer, os lábios brancos trêmulos de pavor.

Andy correu para o abraço de Samira, aberto para ele.

– Onde vamos? – Samira protestou, sob os brados incessantes de Benji no colo do pai, ainda um pequeno bebê de não mais de um ano.

O pai virou para trás assim que pisou no primeiro degrau para descer as escadas de casa. Estava pronto para repreendê-la, quando o som dos disparos do lado de fora o fizeram imediatamente jogar-se no chão e puxar os dois filhos mais velhos com ele. Foram tão altos que pareciam ter vindo do seu próprio jardim, onde horas antes Stella podava as rosas.

Samira gritou, Andy chorou, e o pai logo botou os dois de pé, voando escadas abaixo.

– A porta dos fundos, andem! – Empurrou-os. Os cabelos ruivos como os da filha mais velha grudavam no rosto com o suor que escorria. Com as costas do braço, puxou a cabeça de Benji para perto do peito, tentando passar qualquer calmaria que fosse para o mais novo.

– E a mamãe? – Andy choramingou.

Beto parou. O peito subia e descia com dificuldade, o pavor transbordando do peito. O som dos gritos do lado de fora invadiram os Sabino. Ele colocou Benji nos braços de Samira, que não protestou. Deu um passo para trás para olhá-los com calma uma última vez. Colocou uma das mãos sobre a boca e a expressão de desespero transformou-se em um compulsivo choro.

– Pai, onde está a Stella? – Samira cochichou, puxando Benji e Andy para mais perto. O choro do caçula ameaçava estourar seus tímpanos. O irmão do meio agarrou-se nela como nunca fizera em sete anos. Ela estava, para sua angústia, mais calma que seu pai.

Stella era a madrasta de Samira, mãe de Benji e Andy. Moravam juntos desde que o pai se separou da ex-esposa, mãe de Sam, quando ela tinha três anos. Stella era uma segunda mãe para a garota.

Os estrondos na porta fizeram a cabeça de Beto voltar-se para a entrada. A fechadura estava sendo forçada. Benji berrou, Andy gritou, Sam chorou. Mas os olhos da menina estavam no pai. Ela viu quando seus dedos ficaram brancos ao apertarem a arma com mais força.

Beto deu um passo em sua direção. Samira era uma adolescente que ele tratava como sua menininha, recusando-se a reconhecer que ela já era crescida, com interesses transitando entre meninos, maquiagens e roupas da moda. Por sua vez, naquele lampejo de desespero, Beto tomou a mão da filha e olhou dentro de seus olhos. Fez Samira crescer anos em segundos.

– Eu quero que corra com os seus irmãos pela porta dos fundos quando eu disser.

Samira negou com a cabeça, pressionando os lábios com força para segurar o choro que subia pela garganta.

– Sim, Sam, você vai pegar os seus irmãos e vai dar o fora daqui com eles o mais rápido que conseguir.

– Pai... O que está acontecendo?

Os barulhos de estilhaço da porta da frente deram-lhes certeza: tinham segundos.

– Me escute, Sam! Leve os dois para a casa da Raquel. Pela margem do rio. Não pisem nas ruas.

Os gritos apavorantes do lado de fora de sua casa na gélida calada da noite fizeram-na fechar os olhos com força. Ela sentiu as mãos do pai sobre seus ombros.

– Entendeu, Sam?!

– Sim – ela apressou-se em falar –, casa da Raquel, pelo rio.

Beto fitou-a com os olhos cor de caramelo. O homem os puxou para um abraço apertado, os três, sabendo que não teria tempo de se despedir um por um.

– E você, pai?! – Andy berrou quando o homem apontou a arma para a porta, pronto para atirar em quem quer que fosse.

Beto lhes lançou um último olhar de pesar ao vê-los abrir a porta dos fundos. Sua última sentença para os filhos foi uma dolorosa mentira:

– Eu vou logo atrás.

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Mesmo Samira, a mais velha, guardava poucas memórias daquela noite. Descobriu, com uma conversa despretensiosa com um psiquiatra que acabou no mesmo abrigo que ela, que nossa mente acaba por bloquear lembranças dolorosas, um mecanismo de defesa inteligente.

Mas ela tem vislumbres claros de um dia fatídico. Lembra-se da sensação da lama gelada nos pés descalços, a água congelante do rio que corria pelos fundos de sua casa alcançando seus tornozelos, o desespero de ser responsável por Andy e por Benji e o alívio quase sufocante de encontrar Raquel nos fundos de sua casa, esperando por eles. Sua filha, Zoe, era dois anos mais velha que Sam, e não parecia tão apavorada quanto ela. E Raquel, aquela simpática vizinha tão amiga de seus pais, cuja casa ela cresceu explorando, acidentalmente quebrando vasos e comendo cookies de banana com chocolate, também carregava uma arma.

Das cenas que sua mente não bloqueou, entra a de Raquel e Zoe, uma tão parecida com a outra – a pele negra, os cabelos cacheados, os músculos fortes, os olhos castanhos e lábios grossos de dar inveja –, correndo com eles pelas ruas que seu pai disse para evitar. "É esse o caminho, Sam!", e ela não sabia para quê.

Das cenas que sua mente não bloqueou, entram os disparos da arma de Raquel. O som era claro aos pés do ouvido, e ela conseguiria descrevê-lo minuciosamente depois de tanto tempo, se precisasse.

Das cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Foi quando entendeu que seu inimigo, quem lhe arrancou tudo da noite para o dia, tinha os olhos mais mortos que ela já vira. Olhos de corvo.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora