51. Distante

10 2 0
                                    

Pé ante pé, eles avançavam assim. Com pressa, mas precisando de calma.

A chuva conseguia alcançá-los em todas as direções, mesmo escondidos dentro daquele labirinto de containers no porto.

A audição era um sentido com o qual não podiam mais contar. A tempestade encobria passos, tiros e gritos.

A visão também não ajudava. A escuridão que causaram com a explosão da usina somada ao céu nublado e ao banho de água gelada impetuoso os limitava a enxergar metros à frente.

Mas continuavam. Com pressa, mas precisando de calma. Pé ante pé. Quase cegos de tanta escuridão, quase surdos de tanto barulho.

As mãos de Benji envolviam o antebraço de Samira com afinco, e ela sentia as pequenas falanges tremerem com o medo que o menino sentia. Estava determinada a tirá-lo dali. A arma apontava para a frente, enquanto mantinha o irmão mais novo atrás do próprio corpo.

Tinha um vislumbre da silhueta de Tomas Steve a guiando, e estava convicta de que Eric vinha logo atrás com Andy.

O som da tempestade no pé do ouvido transformava-se gradualmente no de ondas quebrando. Era como se guiavam no desconhecido.

Em dado momento, Tom parou, e Sam quase bateu em suas costas. Ele apoiou as mãos na parede, e inclinou-se, aparentemente aliviado.

– O que foi? – a mulher cochichou.

Tom olhou para trás, e os Olhos de Corvo brilharam com um raio que atravessou os céus. Tinha esperança estampada na imensidão das orbes negras.

– Encontrei – murmurou.

Quando viu que Samira não entendera, mostrou a ela onde estava apoiado: uma marca de faca gravada na lateral de um container.

Ele mostrou a faca nas próprias mãos.

E Sam entendeu que ele encontrara o caminho que desenhou para si mesmo nas paredes, uma releitura de João e Maria.

Eles enfim tinham um mapa dentro do labirinto.




O homem apresentou-se como Miguel Braun. Capitão Miguel. Um nome jovial para um rosto envelhecido.

Quando tiveram medo de que o cenário atual realmente se concretizasse, David Prior contactou Miguel Braun, um homem pacato de olhos verdes-piscina, duas filhas de doze e dezesseis anos e uma esposa também de olhos pacatos. E um poodle. Uma família completa.

David contou do medo que tinham de uma iminente guerra e como precisavam juntar esperanças para um futuro. Miguel era uma esperança. Foi, durante metade de sua vida, comandante de navio. Começou na marinha, e assentou sua profissão como capitão de cruzeiros. Via o mundo inteiro.

Quando David lhe prometeu segurança, para ele e para a família, incluindo o poodle, Miguel aceitou participar de seu plano.

Quando a guerra explodiu, prematura, ele foi um dos primeiros a ser refugiado.

Ele teve insônia naquela noite. Estava no quintal, fumando. Conseguiu fugir e seguir as coordenadas que lhe foram passadas.

Mas as duas filhas e a esposa não tiveram tanta sorte. Ele sempre se sentiu um covarde por não ter voltado por elas.

Mortas nas camas a tiros, enquanto dormiam.

Miguel Braun gostava de pensar que talvez seu poodle tivesse fugido também.

Nas catacumbas em Havenna, teve uma década para se preparar para aquele dia.

O dia em que tiraria seu povo dali.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora