24. Nada Me Assusta

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Quando Mateus Caldas tinha sete anos, injustamente conheceu a dor.

A noite quente de novembro estragou o que poderia ter sido uma de suas melhores memórias. A viagem para Entrecampos, a família reunida, a casa ao pé da praia. Se antes, com sete anos, soubesse apreciar a beleza da calmaria, talvez, ele pensava com frequência, talvez Camile ainda estivesse viva.

Talvez, se não tivessem se afastado da família embriagada na escuridão da praia, se ele não tivesse desafiado a irmã gêmea a nadar no mar à noite, talvez ela ainda estivesse ali. Ele se lembrava de ouvi-la dizer que não tinha medo de nada. Que o mar escuro não lhe assustava, e a água dali era quente, e que ela nadaria a noite inteira. E ele a desafiou a ir mais fundo e mais fundo. Até ouvi-la gritar. Até não vê-la mais.

Mateus gritou. Esgoelou-se com a voz fina de uma criança. E quando o pai ouviu, quando correu o mais rápido que as pernas ébrias o permitiram, quando mergulhou, seguido do tio, e a mãe agarrou-o aos brados e afastou-o da água que ele nem percebia que adentrava, ele achou que logo estariam bem. Em sua cabeça de criança, quando os adultos interferiam nas brincadeiras infantis, elas voltavam ao controle que não tinham.

Mas sua mais vívida e agonizante memória foi o grito de seu pai quando teve certeza de que Camile não tinha esperanças. Ouvir seu alicerce e herói chorar como um bebê o traumatizou de formas que apenas a terapia explicaria, anos à frente.

No dia seguinte, encontraram o corpo de Camile na orla. O mar o jogou na areia com um descaso de quem esnoba as palavras de uma criança. "Nada me assusta". Mateus entendeu a morte. E a culpa. E quando berrou para a mãe que a culpa foi dele, que sua metade afundou na água quente de Entrecampos porque ele duvidou dela, a mãe apenas o abraçou, o corpo tremendo, e disse-lhe para que tirasse toda a culpa do peito. Nada era culpa dele.

Algum tempo depois ele soube que ela tirou a culpa dele porque achava que a culpa era dela. Foi isso que escreveu na carta que deixou, logo antes de pular do décimo sétimo andar. Culpou a depressão, a própria falta de cuidado e bom-senso. Depois se jogou no asfalto da noite fria. E escreveu que ia atrás de Camile.

Mateus nunca foi muito religioso, mas tinha medo que a mãe e a irmã estivessem em lugares diferentes.

Aquela tragédia arrancou-lhe Camile e a mãe. Então, ele cuidou do pai como seu bem mais precioso. Alistou-se no exército e deu orgulho a um velho patriota.

Entretanto, como se não tivesse sofrido o suficiente, a vida decidiu que em quinze de março de dois mil e treze o mundo iria acabar. Para gente como ele. E gente com olhos negros como o oceano em que morreu Camile, como o céu nublado que assistiu sua mãe se jogar, agora tiraram-lhe a única pessoa que ele continuava a amar.

Mateus Caldas sobreviveu à onda de chacina dos Corvos, e tornou-se forte o suficiente para ser o líder que David precisava. Frio o suficiente, talvez, já que a palavra amor, que aprendeu antes de aprender a falar, já não fazia parte de seu vocabulário. Ele nunca contou a ninguém, entretanto, que em um âmago não tão profundo, tinha medo de estar atraindo a morte por onde fosse. Camile, a mãe, o pai.

Tinha medo que, naquele momento, ao pé dos trinta anos, calejado das dores da vida, estivesse guiando e sendo guiado pela floresta de Havenna para a própria morte. Consolava-lhe o pensamento de quem encontraria por lá.




Era um grupo extenso, mas escolhido a dedo. Alguns foram treinados para aquilo – o risco, o estresse, o perigo –, e outros apenas seguiam a maré a passos calculados, o foco ligado no máximo para não perderem-se das sombras familiares nas sombras de uma floresta que parecia prestes a engoli-los.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora