A primeira noite em Havenna foi aterradora.
Samira era parte gratidão – por estar viva, em uma cama, com lençóis, um travesseiro, comida no estômago e um quarto só para ela –, parte solidão, parte saudades e outra desespero.
Lhe cederam a enfermaria, por hora, enquanto providenciavam espaço também para os outros duzentos que chegariam. Além de roupas que lhe cabiam como uma luva e água quente.
Deitada, com apenas uma tímida vela acesa, a mente despejava informações tão distintas que tentar dormir era quase doloroso.
Quando fechava os olhos, Sam voltava para a base dos Corvos. O cheiro fantasma de podridão da sala em que a prenderam adentrava suas narinas. O ar faltava. E ela o puxava e puxava e lembrava-se que estava sob a terra, nas catacumbas de Havenna, em uma área sem energia ou exaustores e tinha que se levantar para conseguir respirar.
Por outro lado, algo a acalentava; saber que valera a pena, no fim. Ir a Romã, levar Andy, fazê-lo voltar com os medicamentos e salvar Benji. Até o que teve que sofrer nas mãos dos Corvos valera a pena, porque agora estava ali. E logo sua família estaria também.
O ranger das dobradiças a fez levantar da cama de supetão, deixando uma exclamação de surpresa cortar o silêncio da madrugada. Ela virou-se para a porta, bem a tempo de ver um rosto pálido a espreitando; a mesma menininha de outrora, que saiu correndo quando Samira a encarou.
– Não, não, espere! – Sam apressou-se em acrescentar, uma súplica sussurrada.
Seus olhos fitavam a porta entreaberta, tendo certeza de que ela não voltaria.
Sam estava pronta para levantar da cama e encostar a porta ela mesma quando ouviu novamente as dobradiças rangerem e, dessa vez, a menina apareceu para ela com clareza, finalmente.
Sim, era mais nova que Ben. A entreolhava dentre o batente e a porta, e Samira viu grandes olhos castanhos, um comprido e bagunçado cabelo do mesmo tom, ondulado. Os pequenos dedos seguravam a porta, e ela parecia querer aproximar-se, mesmo com o pé atrás, pronta para correr de volta.
– Laila, não é? – Samira ligou alguns pontos, arriscando. Já ouvira o nome da menina mais de uma vez.
Laila confirmou com a cabeça.
– Não quer entrar, Laila?
De princípio, a menina não respondeu. Então, hesitante, abriu a porta e a atravessou, encostando-a logo atrás. Ela vagueou pelo quarto, e Sam a observou, intrigada.
– Você vem lá de cima? – a pequena perguntou, para a surpresa da mulher.
Samira concordou, um sorriso amarelo no rosto.
"Lá de cima". Ela não devia conhecer nada que não fosse aquele lugar. Era triste de se pensar. Às vezes, quando Sam sentia que Benji precisava ver além de janelas quadradas, ela o levava até o terraço. Pelo menos ele via a cidade, mesmo que tão tenebrosa sem vida. Podia apontar para a prefeitura, o parque da cidade, a escola onde estudou, o que estivesse ao alcance. Contava histórias. E respiravam juntos o ar puro, o que era o que ela mais prezava. Laila, não. Laila vivera ali dentro a sua vida inteira, Samira supôs.
– Qual seu nome? – a menina insistiu.
– Samira.
– É um nome bonito.
Sam sorriu.
– Quantos anos têm, Laila?
– Sete.
– E o que estava fazendo aqui a essa hora? – Sam soou simpática, quase divertida.
Laila esboçou uma feição travessa e pueril, cavando liberdade na conversa. Aproximou-se da cama.
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...