Samira cerrou os olhos falsos quando o sol da manhã os alcançou.
Seis e quarenta. A brisa era gélida àquela hora. A rua, quieta, quase morta, sendo o único som o farfalhar das folhas que o vento empurrava aos seus pés.
Ela reparou em si mesma: os braços pendendo cansados ao lado do corpo, uma roupa de ginástica que usava mais para ficar em casa, tênis que comprou para andar até o trabalho antes de meter os saltos nos pés e tornar-se Amanda.
Voltou para casa ontem à noite com uma cólera e apreensão crescentes. Mat a trouxera, depois do expediente, e percebeu pelo silêncio dela que algo estava errado. No apartamento, com as janelas fechadas e os outros a esperarem pelos dois, Sam foi bombardeada por um interrogatório ansioso.
– Mas que merda, Samira! – Drica bradou.
– Ei – Miho a repreendeu, mas a loira continuou:
– David jogou ela nesse cargo porque achou que pelo menos alguma coisa útil ela traria pra gente! – Em pé, andando de um lado para o outro, despejava para os outros como facadas cuspidas em palavras pouco polidas. – E a melhor, talvez única oportunidade que tivemos de saber alguma coisa foi jogada pelo ralo!
– Está doída porque seu pai colocou outra pessoa no cargo que não você! – Miho se levantou, defensivo, colocando-se em pé em frente a Sam, ainda sentada e ouvindo as represálias de Drica, enquanto os outros pareciam apenas assistir calados e reservados a lamentos introspectivos.
– Vá se foder Miho!
– Qual o seu problema?!
– Cale a boca pra falar sobre a minha vida!
– Calem a boca os dois! – Eric despejou. – Porra, não sejam estúpidos!
– O que–
– Falem baixo – Eric interrompeu a amiga.
Um segundo de silêncio profundo. Drica lançou um olhar fervoroso para Sam, que apenas o acatou de cabeça erguida, e Drica fechou-se no banheiro.
Samira nem lhes contara o fundo do poço de sua noite. Era melhor não saberem.
Quando ela abriu os olhos, Eric estava ao seu lado, amarrando os tênis de corrida.
Os dois saíram antes que os outros acordassem.
Droga, ela estava tão nervosa. Antes, a corrida era um delicioso escape, mesmo que fosse para correr em círculos na academia que criaram dentro do abrigo, mas, agora, com o corpo frio, era assustador sentir a dor que ainda perscrutava sua coxa. Ela conseguia sentir a cicatriz com a ponta dos dedos mesmo por sobre a calça, e teve a sensação de que o que mais doía eram as lembranças daquela noite e de como, por pouco, não a destruíram para valer.
– Está pronta? – Eric perguntou.
Ela queria olhá-lo nos olhos de verdade, mas contentou-se com a cordialidade daqueles olhos negros. Ele não a sufocou. Não fez perguntas sobre a noite anterior, não tocou no assunto. Nem mesmo no assunto do livro que ela escondeu embaixo do colchão. Não era por isso que ele estava ali.
Sam concordou.
Eles, então, andaram por cinco minutos contados, em um silêncio que não chegava a ser desconfortável.
Eric a olhava de soslaio vez ou outra, e Sam fingia não perceber.
– Dez minutos – ele contou, olhando o relógio de pulso.
Sam respirou fundo. Mais fundo. E começou um trote devagar, que ele acompanhou no mesmo passo.
As ruas estavam começando a movimentar-se. Janelas abriam, portas de comércios locais, carros transitavam, e eles seguiam.
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Olhos de Corvo
AksiyonDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...