Drica Prior passara dez anos de sua vida enfurnada no bunker que criaram em Havenna e, apesar de fazer de tudo para que todos se sentissem o mais confortáveis possível, aquele lugar não podia ser chamado de casa. Era sufocante estar presa lá.
Leu um artigo uma vez que achou em uma das idas à cidade. Era uma revista popular de anos antes que fora abandonada em uma banca de jornais. Ela lembrava-se da matéria dizer que, dentro de um ano, alguém que perdeu tudo e alguém que ganhou na loteria estariam imersos no mesmo estado de espírito, porque era questão de tempo até habituarem-se à nova vida. E, de alguma forma, saber daquilo era reconfortante. Drica esperava, então, que dentro de um ano, mais ou menos, habituaria-se àquele lugar em Havenna. Mas, não. Só percebeu o quanto sentia falta do ar livre quando descobriu que, se subisse mais um lance de escadas naquele decadente prédio em Luso, encontraria a porta para o telhado com a fechadura arrebentada. Era lá que ela se refugiava quando queria ficar sozinha. Deitava no chão, olhava para o céu, contava as estrelas. E respirava fundo.
Não queria ter que se preocupar com o novo hábito que não conseguia mais abandonar, mas o cigarro aceso entre os dedos da mão direita era preocupantemente requisitado diversas vezes ao dia. Droga, a nicotina era a única coisa que não a deixava enlouquecer completamente. A nicotina e, curiosamente, Zoe.
Drica fechou os olhos e respirou fundo, estendida no chão do telhado. Uma das mãos sobre a barriga, sentindo-a subir e descer com a respiração ritmada, e a cabeça nos olhos castanhos da mulher que ela esperava todos os dias por tirar as lentes de contato para poder ver com atenção.
– Você devia ter visto – ela fofocou com Zoe quando chegaram, sãos e salvos, de Calenar –, David estava um monstro. Eu aposto que ele teria voado no pescoço da Samira se não estivéssemos em público.
Zoe bufou.
– Por ela ter sido boa?
– Está defendendo ela porque ela é sua amiga.
– É quase a minha irmã, Drica.
– Que seja, mas se ponha no lugar do meu pai.
Mas Zoe bateu o pé no chão de que Samira estava certa em confiar em Tomas Steve, o que Drica queria ter achado irritante, mas só achou-a uma ingênua e teimosa criatura.
Enquanto contava as estrelas, pensava no segundo passo dos planos de David, e como foi difícil deixar o pai outra vez. Vê-lo furioso daquele jeito a fez ter vontade de abraçá-lo e confortá-lo, dizer que as coisas dariam certo, mesmo que as palavras fossem vazias.
Mas, para provar-se a adulta que tentava provar a ele que era, Drica abraçou-o forte, não chorou, beijou-lhe a bochecha e entrou no carro alugado para voltarem para Luso.
– Achei que tivesse largado essa droga.
Drica quase pulou com o susto, e a mão foi direto da barriga para o coração. A outra, afundou a bituca de cigarro no chão e apagou-a. Ela virou-se para a porta do telhado e Eric estava parado ali, sorrateiro como um gato, os braços cruzados e um sorriso torto. Ela ainda não acostumara-se a olhá-lo com aqueles olhos negros. Sentia falta do azul marinho no rosto dele.
– Credo, homem. – Ela sentou-se. – Quase me matou do coração!
Ele riu e aproximou-se.
– Posso? – perguntou, indicando o chão ao lado dela. Ele sentou-se à sua frente antes de esperar por confirmação, apoiando as costas no parapeito.
– Como me achou aqui? – Ela alcançou outro cigarro, recuperando-se do susto.
– Não tem muito pra onde fugir – respondeu –, tem?
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...