O primeiro deles, não se sabe quando nasceu. Era de se esperar alarde de algo tão incomum e inusitado, mas as autoridades abafaram o caso. Sabe-se apenas que data de séculos e séculos antes da história dos Sabino.
O primeiro Olho De Corvo, como ficou conhecido, foi estudado. Os cientistas e pesquisadores concluíram que os olhos de aspecto tão singular – negros de ponta a ponta, sem íris, sem pupila – eram resultado de uma mutação genética que até então não se tinha conhecimento de ser possível.
Como uma pandemia, mais nasceram, em diferentes partes do mundo. Notas foram tomadas e, assim que a internet tornou-se o meio de disseminação global que conhecemos hoje, os Olhos de Corvo ganharam fama. Cresceram, procriaram, se multiplicaram, e os estudos acerca desses humanos com orbes completamente pintadas de preto não pararam. Foi quando descobriram que estes eram o que chamamos de super humanos. Resistência ao frio, ao calor, à fome, a qualquer tipo de patologia. Fortes como touros.
Então, o poder subiu à cabeça. Os Olhos de Corvo tornaram-se uma supremacia. Assumiram os postos de liderança de todas as nações. E ficou fácil tomar a decisão: eles eram os melhores, a raça que prevaleceria, que viveria milhões de anos, que extinguiria as doenças do mundo. Mas, os que vieram antes, a versão menos atualizada, cheia de defeitos, tinha que ser eliminada.
Na noite em que os Sabino perderam tudo, foi dada a ordem de extermínio.
Mas Beto Sabino já estava pronto, prevendo a desventura iminente. E Raquel também. Poucos foram os preparados. Esses poucos tiveram uma segunda chance.
21 de novembro de 2023, atualmente, Ponta Porosa
A noite prometia ser uma das mais quentes do ano. Nem mesmo o vento, único sobrevivente daquela cidade fantasma, veio para dar as boas-vindas à mulher.
Samira gostava de trabalhar sozinha. Sentia-se dependente dela mesma e só. E era boa no que fazia.
Mesmo que a temperatura estivesse alta, ela usava as roupas que o protocolo lhe mandava. Calças compridas, tênis confortáveis, um casaco de mangas longas e um capuz consideravelmente maior que sua cabeça. As roupas, todas pretas, cor da noite lá fora.
Podia fazer aquilo o quanto fosse, o nervosismo ainda a acometia em todas as vezes. A arma estava sempre ou a postos ou empunhada. Ela olhava para todos os lados, a todo momento, enquanto deslizava pelas sombras de onde um dia foi Ponta Porosa, a cidade vizinha.
Samira aprendeu a ver a beleza do mundo abandonado. Em dez anos, a vegetação tomou conta. As árvores, os arbustos, as flores e raízes cresceram por onde encontraram brecha, rachando o asfalto e competindo com aquela selva cinza que era a cidade grande. O verde engolia o que um dia o engoliu. Era quase poético.
Sam tirou o capuz que impedia sua visão periférica. Os passos ligeiros eram certeiros, seguindo por caminhos que ela mesma mapeara como seguros. Da porta do abrigo ao shopping era um trajeto de duas horas. No começo, achou que seus pés nunca se acostumariam. Todavia, depois de anos, andar por tanto tempo era como respirar.
A mulher esgueirou-se para a lateral do shopping, guiando-se apenas pela memória na escuridão de Ponta Porosa. Aprendera a acostumar-se às pragas e animais que moravam ali. Preferia ignorá-los a enfrentá-los. Ela arrancou as teias de aranhas ao espremer-se entre o prédio comercial e seu destino, uma passagem tão estreita que sequer deveria existir, uma ruela com cheiro forte de animal morto. Sam tapou o nariz ao adentrá-la. Era tão mofina que quase precisava passar com o corpo virado de lado, e os prédios ao seu redor eram tão altos que a fraca luz da lua não a ajudava em nada.
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...