Adriana Prior não atendia por esse nome.
Drica repudiava o nome Adriana porque foi a mãe quem insistiu para que ela o tivesse. Logo depois, arrumou alguém melhor que seu pai e fugiu. Deixou uma carta, pelo menos!, ela não era uma desnaturada. David leu a carta para uma menininha de quatro anos com os pés balançando para fora da cadeira da cozinha. Uma menininha tão loira que os fios eram quase dourados – dos cabelos, das sobrancelhas, dos cílios longilíneos que guardavam lindos olhos claros que se perderam nas palavras de um pai que lia: "vou ver o mundo, Adriana. Vou conhecer tudo e volto para te contar. Mamãe ama você, mas tem que ir agora", e Drica pensava naquelas palavras com frequência, não sabendo se o pai as inventara ou não. Até onde ela sabia, o conteúdo da carta resumia-se a: "Vou ver o mundo com outro homem, David, porque você não abraçou minhas loucuras e não quis ir comigo. Não te amo mais, David, então tenho que ir agora".
Drica queria entender o que leva um amor por alguém a ser tão forte que precisa de uma fuga, uma mudança de vida tão drástica que não cabia ela, sua própria filha.
Durante anos fantasiou sobre isso; que a mãe se apaixonara por um espião da CIA supersecreto e precisou fugir com ele para se esconderem na Sibéria, para viver o amor impossível deles em um lugar onde é frio demais no inverno e tem muitos mosquitos no verão.
Enquanto crescia, entretanto, entendeu que não era nada daquilo. A mãe fugiu porque quis, foi dramática e fez uma saída triunfal digna de um filme, deixou um bilhete escrito à mão e tudo. Fugiu com o novo amor da vida dela e deixou David e Adriana. E isso Drica nunca perdoou. Porque, se sua mãe não amava mais seu pai, tudo bem. Ela entendia isso. Mas deixá-la também?
Então, nada de Adriana. Era Drica. Drica Prior.
Às vezes sonhava com ela, como foi na primeira noite em que dormiram no apartamento em Luso. Ela não se lembrava da mãe com precisão, mas sabia que era muito parecida com a mulher que agora a fitava no espelho. Naquela noite sonhou que a mãe entrou pela porta da frente de uma casa que um dia foi um antro feliz para Adriana, David e uma mulher de face agora borrada, que então sorria tranquilamente e dizia: "Adriana, olhe! Eu voltei! Eu disse que voltava para te contar! Faz muito frio na Sibéria, mas meu novo amor por esse outro homem aquece minha vida, e você amaria o rio Lena no inverno, Adriana! Adriana, o que aconteceu com seus olhos?", e Drica levou as mãos aos olhos, sentiu o líquido que escorria deles e viu que era negro e viscoso. Ela olhou para o lado, para o espelho na entrada, e seus olhos eram negros iguais aos de Corvos, e ela acordou.
Já não sabia se escolher o sofá fora a melhor decisão. Era pequeno demais, mesmo para ela que gostava de dormir encolhida. Tinha cheiro de mofo, como tudo naquele apartamento.
Drica não sabia que horas eram, mas era tarde. A madrugada lá fora estava quieta, e todas as janelas estavam fechadas para que pudessem tirar as lentes de contato em paz e dormir em paz, pelo menos na primeira noite.
Drica olhou em volta, estudando como os outros se dispuseram por aquele mísero espaço. Zoe e Samira dividiam uma cama de solteiro, e Eric dormia como um príncipe no colchão do chão, de bruços. Mateus tinha apenas parte do tronco nesse mesmo colchão, mas as pernas pendiam sob um cobertor duvidosamente sujo que encontraram em um dos armários. Miho dormia sentado em um canto, ao lado do fogão, as costas apoiadas pela própria mochila. Precisariam providenciar algo melhor em breve.
Drica fechou os olhos outra vez e obrigou o sonho perturbador a ir embora. Se a mãe estivesse na Sibéria aquecida pelo seu novo amor por outro homem, não queria saber. Provavelmente estava morta também, por causa dos mesmos olhos que Adriana herdou. Provavelmente fora morta no rio Lena, lindo no inverno, e provavelmente seu novo amor, agente supersecreto da CIA ou não, não foi capaz de salvá-los. Será que ele tinha olhos castanhos? Verdes? Ou eram de Corvo, assassinos? Ele a mataria ou morreria com ela? Não importa. Não importa mais porque ela nunca vai voltar. Se tivesse sido mais madura e ficado, talvez David tivesse a salvado como fez com Drica. Talvez. Talvez. Talvez. Quando Drica dormiu, não voltou a ser Adriana. Sonhou com baratas passeando em seu sofá, e esperava que fosse só um sonho. Pelo menos a mãe não voltou a aparecer nesse, e sua única assombração tornou a ser o que fariam no dia seguinte.
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...