Depois do dia em que o mundo acabou, cada um desenvolveu a própria visão da vida.
Para uns, era sorte estar vivo. Para outros, um deplorável imprevisto.
Para os otimistas, a chance de recomeçar. Para os pessimistas – e até para os realistas – fatalidades e desfortúnios em um caminho sem luz no fim do túnel.
E, entre todos eles, estava Laila.
Laila nasceu com dois quilos e trezentos nas mãos de Eric Ferragni, uma criança de vinte e dois anos que leu durante meses sobre parto e não sabia se conseguiria tirar outra criança da barriga de Marta. Mas o fez e, mesmo que Laila tenha nascido abaixo do peso, mesmo que Eric tenha descabelado-se de exaustão após o parto, que Marta Ramirez tenha sentido a dor mais excruciante de sua vida e que Fabrício Ramirez tenha desmaiado no chão do quarto, tudo ocorreu bem.
As circunstâncias não quiseram ser boas para a vida da pequena Laila, entretanto.
Fabrício, aos cinquenta e sete anos, forte como uma rocha, sofreu um AVC. Dizem que a morte foi rápida. Não deu ao menos tempo de chamar Eric, e o garoto nada conseguiria fazer, de qualquer forma. Marta ficou tão triste, tão só, tão... doente. Nem Laila a segurou ao mundo quando ela se foi. Definhou até morrer, e não conseguiram diagnosticá-la.
Com dois anos, Laila Ramirez era órfã.
Laila cresceu em um lugar onde o sol não batia. Eram raras as vezes em que a levavam para a Gruta Que Chora para tomar sol na pele. Para ela, não existia tempo bom ou tempo ruim. Não existia tomar chuva. Não existia brincar na rua, jogar bola. Cidades, ela só conhecia de histórias. Florestas eram um mito bonito na boca dos outros. E a vida era aquela, fechada dentro de catacumbas, o medo do que tinha lá fora, lá em cima. E a curiosidade.
Laila Ramirez apegou-se aos que lhe deram amor, e Eric Ferragni o fez sem esforços. Era fácil amar Laila. Ele a botou no mundo, e era uma garotinha doce, tranquila, uma inocência que transbordava dos olhos despreocupados, e Eric conseguia ver tudo o que um dia viu de bonito no mundo apenas de vê-la crescer.
Ele não a acolheu por escolha sua quando Marta e Fabrício morreram. Foi Laila quem escolheu seu ombro para chorar quando sentia saudades. E ela era tão pequena. E Eric era tão sozinho. E um inusitado laço cresceu entre os dois.
Quando Eric não voltou de Romã, naquela fatídica noite, Laila soube. Foi ela quem contou para Drica.
– Ele já tinha que ter voltado, né?
E estava certa, o coraçãozinho batendo acelerado no peito, e Laila leu nos olhos de Drica que talvez a vida fosse lhe tirar mais alguém. Que os homens maus lá de cima, quem quer que fossem, tinham olhos negros e queriam machucá-los. E, agora, machucaram Eric.
Quando Eric voltou, voltou com uma mulher. E Laila surtou. Ela conhecia cada um ali dentro, cada mísero ser humano que vivia nas catacumbas. Aquele era o mundo inteiro dela. E, um dia, Mat voltara da superfície com uma estranha nos braços que, à princípio, Laila achou estar morta. Até conversar com ela. Descobrir seu nome. Descobrir como era a vida de outra perspectiva. Que Samira gostava da chuva, que ela a assistia bater em sua janela. Descobriu o que é uma janela. Que Samira tinha um irmão só um pouquinho mais velho que ela. E Laila voltou a acreditar na pureza da vida, nas coisas boas, e que nada de mal poderia lhes acontecer. Que Eric poderia demorar-se a voltar, mas voltaria. Às vezes, até trariam gente lá de fora.
Então, quando ela ouviu os fuxicos que se espalhavam pelas ruelas de sua casa, Laila apurou os ouvidos. Os olhos castanhos arregalaram. E ela correu para encontrar Samira.
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Samira pensou que facilmente se habituaria a segui-lo por corredores escuros se Eric continuasse lhe mostrando lugares como aquela gruta. Ela não conseguira assimilar o caminho e não se arriscaria a perder-se lá dentro sozinha, mas duvidava que ele se negasse a levá-la lá outra vez. E Samira prestaria mais atenção e logo seria uma questão de tempo até ter mapeado o caminho para um paraíso perdido dentro das catacumbas.
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...