18. Dois Lados Da Mesma Moeda

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No dia em que Eric Ferragni nasceu, choveu pela primeira vez em duzentos e vinte e sete dias.

Foi um vendaval devastador. Arrastou telhados, destruiu casas, provocou enchentes, fez gente perder tudo. Mas, para a mãe e o pai de Eric Ferragni, foi uma bênção; tirou-lhes da seca extrema que matava as pessoas lá e cá nas ruas ferventes de Santos, quarenta graus para mais e subindo. Era tudo uma questão de perspectiva, sabiam, mas coincidir com a data do nascimento do primeiro e único filho? Era uma bênção, sim, crenças à parte.

Quando Eric abriu os olhos pela primeira vez, Francisca Ferragni perdeu o ar por um segundo. O filho tinha as orbes mais azuis que já vira. Ela demorou a entender as probabilidades genéticas; 6,3% de chances de seu filho com Armando vir com os olhos claros e lá estava ele, uma criatura tão doce, tão linda, com olhoa azuis feito o mar nos dias mais bonitos.

– Sabe que vai mudar de cor, não é? – Francisca ouviu de dezenas. Às vezes, até mesmo de gente de que ela nem sequer conhecia. – Os olhos do seu filho vão mudar.

E não mudaram, pois.

Eric Ferragni, filho de Francisca e Armando Ferragni, tinha olhos de tirar o fôlego desde que nasceu.

Viveu a infância dos sonhos de muitos. Pais amorosos, que amavam-no e um ao outro; uma casa térrea nos subúrbios de Santos, com vizinhos que o chamavam para jogar bola na rua até tarde; o conforto financeiro de uma família rica, com dois pais na área da saúde – Francisca era cirurgiã e Armando, pediatra.

Eric cresceu fascinado pela medicina, pela biologia, a ciência por trás das coisas, da vida. Seu primeiro livro – Perguntas e Respostas Sobre o Universo, de Makail W. Fourin – foi um presente que lhe rendeu tanto prazer, aos sete anos, que o menino descobriu-se um explorador e devorador de conhecimento, e Francisca e Armando alimentavam sua sede por sabedoria. E Eric era um pequeno jarro de curiosidade.

Cresceu um estudioso. O primeiro da turma, por vezes alvo de chacota. E nunca se importou.

Sonhou com física, com história, com pesquisa, com biologia, ciências, mas a paixão estava, sem dúvidas, na medicina. Tinha um sonho recorrente, que por vezes o fazia sentir-se jovial e utópico demais, de que viveria a salvar vidas, e seria o melhor. Com dezoito anos, passou em quarto lugar na melhor faculdade de medicina do país, a Universidade de Ponta Porosa, UPP, e dedicou dia e noite a tornar-se o que sonhou.

O primeiro da turma, o primeiro da universidade. E assim foi.

Mudou-se de Santos para Ponta Porosa, e tinha uma foto dos pais na cabeceira da cama. Francisca e Armando Ferragni lhe sorriam em um dia frio de outono à beira do rio de Santos, no parque da Cantiga, ainda dois jovens amantes que não faziam ideia de que em breve, questão de três anos, o teriam em suas vidas como o mais precioso presente.

Mas, para a infelicidade de Eric Ferragni, o destino não quis lhes ser bom.

Um ano depois, no dia oito de março, a mãe ligou. Ela nunca ligava sem antes perguntar se podia. Eric estava no campus da UPP naquela manhã, correndo. Parou, ofegante, e, ao atendê-la, teve que se sentar no meio fio. A voz de Francisca era uma lamúria distante.

– Eric – não mais habitualmente doce, a mãe o chamou –, tem que vir para casa.

Aquela foi a maior encruzilhada de sua vida. Francisca não lhe deu explicação alguma. Disse apenas que era caso de vida ou morte, e ele teve certeza de que a mãe ou o pai estavam doentes.

Foi uma semana difícil, em que Eric pediu o trancamento do semestre e pegou um voo para Santos, apenas uma mochila nas mãos. Aterrissou no aeroporto de Santos em quinze de março de 2013, não sabendo que aquele seria o dia em que o mundo acabaria.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora