Ele recusava-se a abrir os olhos. O estado febril o afundava nas duras e desconfortáveis almofadas que arrecadou para seu quarto. O colchão estendido no chão era palco de um ninho de cobertores doados a ele por pura piedade, a vontade de acalentar um coração despedaçado pela dor de quem não voltou com ele.
Andy tinha frio, apesar de tanto calor lá fora. Um frio que vinha de dentro, um calafrio que subia a espinha a todo momento. E as lágrimas secaram. Mas algo morreu dentro dele.
Sentia o calor do corpo de Zoe ao seu lado, cuidando para que sua febre baixasse. Ele ouvia-a fungar, mas não queria abrir os olhos. Sentia-a limpando os ferimentos – as mãos esfoladas de subir pelo fosso do elevador – e queria sentir pena por Zoe, mas não tinha espaço para isso em seu luto. Ela lidava com a perda de sua própria maneira, mantendo a mente ocupada a cuidar dele.
– Andy? – a voz de Zoe soou tímida, arrastada e embargada.
Andy abriu os olhos para o quarto vazio. A pouca luz do sol que entrava pelas frestas da janela cegaram-no em tons de azul. Ele deixou as orbes se acostumarem antes de voltá-las para Zoe. A amiga, quase irmã, não o olhava. Tinha os cabelos presos como habitual, os dreads bem amarrados no topo da cabeça. Lágrimas cortavam a pele negra e, se pudesse, Andy as limparia, mas não estava em posição para isso. Zoe segurava a palma da mão direita de Andy aberta, voltada para cima e, com um pedaço de algodão úmido, limpava o sangue e a sujeira das feridas abertas. Ela sabia que ele estava ouvindo-a.
– O que aconteceu lá? – perguntou.
Andy sentiu uma repentina pontada de raiva. Não sabia se um dia conseguiria contar-lhes o que aconteceu. Os detalhes, sabia, morreriam com ele, imagens enterradas nos obscuros da mente. Mas, tão recente, Zoe estava ali lhe pedindo para despedaçar-se mais um pouco. Ele voltou a fechar os olhos.
– Por favor, Andy – ela insistiu.
– Não me faça viver isso de novo, Zoe – o timbre soou ríspido e, novamente, se pudesse sentir algo além do luto, sentiria remorso.
– Eu... eu não imaginava que...
– Que nós testaríamos a única chance de salvar Benji?
Zoe apertou os lábios.
– Não imaginava que eles estivessem lá – exclamou, a voz soando mais firme, uma falsa tentativa de engolir o choro.
Andy e Zoe olharam nos olhos um do outro; um par, seco e morto. O outro, úmido e caminhando para o mesmo destino. Os dois carregados de dor e cumplicidade. O lábio de Andy voltou a tremer.
– Como eles são?
A pergunta de Zoe pegou Andy desprevenido. Durante anos, aquela vida foi tudo o que tiveram. O mundo não tinha mais do que aqueles metros quadrados delimitados por paredes de concreto frias e os olhos que viam eram os mesmos, por uma década inteira. Por dez anos, conheciam apenas o seguro, o falso conforto de um lar supostamente inabalável, e acostumaram-se com a ideia de que a vida era apenas aquilo. Que viveriam e morreriam ali, e eles nunca mais o incomodariam. E lá estavam, outra vez.
É claro que conheciam aqueles olhos. Viveram décadas com eles. Tinham amigos com olhos negros. Houve uma época, agora tão utópica, em que conviviam, compartilhavam salas de aula, diziam bom dia nas ruas. Aquela pergunta não era estranha.
"Como eles são?"
Porque dez anos é muita coisa. E as pessoas que destruíram suas vidas não eram nada do que já viram. Aquela indagação, por isso, Andy precisou responder.
– Eu gostaria de dizer que são iguais a nós, Zoe. – Ele olhou da palma da mão aberta para os olhos da amiga, que tremiam ao fitá-lo. – Mas não são. Eles são... são...
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Olhos de Corvo
ActionDas cenas que sua mente não bloqueou, cuja memória Samira guarda com carinho, entram as íris caramelo de seu pai na última vez em que ele a olhou no olho. Daquele dia em diante, aprendeu a preciosidade daquele gesto, o olho no olho, íris na íris. Fo...