3. Cianeto

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Aquela notícia arruinou o dia de Samira. Mesmo o sono, que devia ser um incômodo estorvo, fugiu-lhe do alcance.

Sua rotina fora jogada no lixo naquele dia atípico. Zanzava pelo edifício como uma barata tonta e sem rumo. Queria conversar, mas não encontrava Zoe em lugar nenhum. Precisava saber que a melhor amiga acreditava nela – ela não baixou a guarda. Nem por um segundo.

Em outra época, Sam foi a pessoa mais desligada que ela já conheceu. A mente voava em pensamentos vagos, os pés andavam à toa, e muito daquela garota ainda estava ali. Mas Samira aprendeu o que poderia custar aquele desarranjo no mundo em que fora obrigada a viver. Então, todas as vezes em que saía à campo, tinha o mesmo pensamento em mente: "se eu falhar, falho com eles. Falho com Raquel, com Zoe, com meus irmãos. Se eu falhar, é a vida deles em risco". Foi com esse lema assustador que ela propôs a mais desconcertante cláusula do protocolo que criaram:

– Cianeto. – Ela lembrou-se dos olhos arregalados no concílio, naquele dia chuvoso há oito anos. Ela tinha apenas dezesseis, e aquela sentença fúnebre vinda de seus lábios inocentes evidenciava o desespero da vida que levavam. Samira cresceu cedo.

– Você leu muitos livros da Agatha Christie, menina – Jon zombou dela. Desde sempre, nunca a levou a sério.

Ela não se deixou levar pelas palavras debochadas.

– Um de nós sai, cento e oitenta e um de nós depende de que voltemos para casa. Se nos pegam, vão nos interrogar até descobrirem onde estão todos. – A jovem Sam cruzou os braços, tentando passar seriedade. A resposta estava clara, e aceita em silêncio. Se fossem pegos, precisavam acabar com suas vidas antes que levassem quase duas centenas de sobreviventes juntos. Uma vida por centenas. – Cianeto.

Não foi difícil de encontrar. Farmácias de manipulação em Murucututu, a cinco quilômetros dali, tinham um considerável estoque. Nunca precisaram usá-las, mas o breve peso das pílulas mortais no bolso das calças eram lembretes constantes dos riscos que assumiam os patrulheiros.

Samira não encontrou Zoe em lugar nenhum. Temendo que a amiga estivesse a evitando, rumou, então, para um de seus melhores confidentes.

Chegou ao décimo primeiro andar, escuro àquela hora, sem luzes entrando pelas janelas laterais. O andar estava vazio, o que a fez pensar que talvez devesse estar fazendo algo de produtivo como os outros. Mesmo assim, ainda tinha esperanças de encontrá-lo.

Assim que chegou ao quarto dele, girou a maçaneta e entrou.

A cena a desconcertou.

– Ah, porra! – exclamou, levando uma das mãos aos olhos.

Ela viu o irmão do meio semi-nu, vestido apenas com as roupas íntimas que, um segundo mais tarde, teriam ido para o chão. Sob ele, uma das garotas do prédio. Marlene. Sam sabia seu nome, mas não tinha contato. Era uma jovem bonita, de cabelos loiros compridos. Beijavam-se, e o vestido dela estava jogado aos pés de Samira.

Marlene soltou um grito esganiçado ao ver Sam e empurrou o garoto. Os dois logo se cobriram.

– Porra, Sam! – Andy bradou, procurando pelas calças.

– Era só trancar a porta! – A irmã gritou de volta.

Marlene, vermelha como um pimentão, colocou seu vestido o mais rápido que pôde, e não ousou olhar nem para Sam e nem para Andy ao deixar o quarto.

Samira acompanhou-a com o olhar ao passar, e fechou a porta logo em seguida. Andy, agora com as calças, abriu os braços e soltou-os ao lado do corpo, em uma evidente frustração com a irmã mais velha.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora