Omissão

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[• Nova Primavera (MS), 1993. •]
- Antônio?! Chamou. Antônio?! Você está aí? Eu posso entrar? Pisou calmamente.
- Oi Irene. Estou aqui na cama lendo alguns relatórios de exportação do soja. Continuou encarando os papéis. Como você pode pedir licença para entrar no próprio quarto em? Eu acho isso tão estranho e... Paralisou ao encarar uma mulher totalmente sofisticada, postura reta e admirável delicadeza. Irene vestia um macacão azul claro, saltos brancos, e ostentava os cabelos, agora louros, soltos e jogados sobre os ombros, desenhando cachos encaracolados nas pontas. Usava maquiagem leve e andava de maneira elegante. Impossível não encarar.
- Irene?! Reagiu boquiaberto ao ver a transformação de sua esposa. Você está... Meu Deus, que diferença. Quase não conseguia se lembrar dos cabelos negros e ondulados que a mulher usava antes. Muito menos, das roupas que marcavam seu corpo e a faziam chamar atenção de todos os homens da pequena cidade em que viviam.
- Gostou? Rodopiou pela suite em que dormia com Antônio, já há pouco mais de um mês.
- Se eu gostei? Continuou encarando. Eu já sabia que você era bonita. Mas... Assim, nessa versão mais...
- Recatada e do lar. Eu sei, te dava vergonha de estar comigo antes né. Mas, eu também não gostava daquelas roupas. Fui obrigada a usá-las quando cheguei ao bar e...
- E tudo isso é passado agora. Se aproximou da esposa. Estamos casados. Vamos construir uma família. E você não é mais aquela Irene que eu conheci. Você agora é...
- Irene La Selva. Sua esposa. Concordou enquanto o beijava várias vezes. Eu não vou demorar a me acostumar. Juro. Agora, não acha que temos coisas mais interessantes a fazer do que passar a noite lendo relatório de soja? Engatinhou sobre a cama, até subir no colo do marido.
- Eu acho. A encarou. Você está tão linda. Elogiou. Mais que o normal.
- Que bom. Sorriu. Que bom que você gostou Antônio. Espero estar à sua altura agora. Desejou.
- Você está. Alisou seu rosto. A altura de quem você é agora. Afirmou.

[• Nova Primavera (MS), 2023].
Irene já estava quase livre dos aparelhos que a tornavam refém da cama de hospital. Tinha boa cicatrização e força de vontade. Os roxos já estavam quase imperceptíveis e os arranhões já não doíam tanto. O local da cirurgia também já estava duro o bastante para que ela pudesse se mover com mais facilidade, sentando-se sobre a cama.
- Com licença dona Irene?! Trouxe a sua dieta. Tentou sorrir. Como a senhora está se sentindo?
- Bem melhor. Fui gentil. Muito obrigada, eu já vou comer. Você acha que... O meu filho está mesmo bem? Encarava a enfermeira, enquanto ajeitava o guardanapo no colo e puxava a bandeja para si.
- Pelos exames ele está muito bem. A tranquilizou. Fica tranquila. O susto já passou. Vocês estão fora de perigo.
Assim que abriu a bandeja, sentiu o cheiro da sopa de legumes e voltou a fechar o prato. O empurrando em seguida.
- Algum problema com a dieta dona Irene? Reagiu preocupada.
- É que... Eu nunca consegui comer sopa enquanto estava grávida. Tentou sorrir. Sempre enjoei muito, nas minhas duas gravidezes.
- Entendo. Vou providenciar outra refeição. Recolheu rapidamente. Com licença.
- E você em? Se referiu ao filho, enquanto tocava pela primeira vez seu ventre. Fala pra mim, o que nós vamos fazer da nossa vida agora? O que? Porque você não me deu sinais de que estava aí dentro, antes que eu tentasse acabar com a minha vida e quase te levasse junto? Quase sorriu. Que bom que você sobreviveu. Acho que eu não aguentaria ser a responsável pela morte de mais um dos meus filhos. Foi sincera. Sabe que, o seu pai nunca nos deixaria em paz se soubesse que você existe. Refletiu. Enquanto encarava todos os lados do quarto, com desespero.
A ex de Antônio La Selva finalmente se deu conta do que estava acontecendo. Ela estava grávida de um homem que a havia escorraçado de casa há poucos dias. Um homem que a abandonou e a fez querer deixar de viver. Um homem a quem ela dedicou seus últimos anos, servindo-o como se fosse sua criada, e não sua esposa. Ela tinha medo. Tinha medo que tirassem dela, a única coisa que ainda tinha, quando achou que não havia restado absolutamente nada. Um filho poderia não ser coisa séria para muitas pessoas. Mas, para ela, que sempre exerceu esse papel com tanta dedicação, um filho era tudo. Mesmo que não o quisesse quando soube que ele existia. Não por ele. Mas, por Antônio, o homem que a deu tudo, e tirou, sem a menor piedade. Que a machucou tanto. Que soltou a sua mão, a deixando sozinha. Justo agora.
- Eu ainda não tenho um plano concreto, meu filho. Revelou. Mas, assim que tivermos alta desse hospital, deixaremos Nova Primavera. Precisamos sumir daqui e fugir de toda essa gente que não nos quer bem. E eu te prometo que mesmo estando sozinha, eu vou te proteger. Espero que um dia me perdoe por te afastar do seu pai. Mas, isso é o melhor pra você, hoje. Eu juro. Nós não estamos seguros aqui, meu filho. Não estamos. Deixou uma lágrima escorrer, antes de voltar a dormir.

Antorene: The After Onde histórias criam vida. Descubra agora