Antônio La Selva

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[• Nova Primavera (MS), 1976 •]
- Antônio?! Gritou. Ô Antônio!!! Eu acho bom você aparecer logo moleque. Você vai tomar uma surra daquelas se não fizer logo o que eu mandei você fazer. Caminhou por toda a extensão da fazenda, irritado.
- Pai?! Gritou. Eu tô aqui. Apareceu, finalmente. Eu só tava...
- Tá molhado, cheirando a lama. Constatou. Quantas vezes eu tenho que te dizer que você não tem mais idade pra ficar vagabundando por aí. Brigou. Aos 12 anos de idade, sendo filho mais velho como você, eu já acompanhava o meu pai nas negociações dos grãos. Apontou o dedo. Agora você vai aprender a não desobedecer às minhas ordens. Puxou o menino pela manga da camisa, até que o levasse para um galpão, arremessando contra a parede.
- Pai... Chorou. Por favor... Tentou protestar.
- Você fica aí até entender que quem manda em você sou eu. Afirmou, enquanto trancava as portas. E sem chorar. Gritou. Vira homem.

[• Nova Primavera (MS), 2023 •]
Antônio On:
Eu ainda me lembro da sensação de solidão que aquele lugar me trazia. Ainda me lembro do frio, dos barulhos e do medo. Eu ainda me lembro de todas as vezes em que tive que passar por isso. E não, traumas não se curam tão facilmente. Não como gostaríamos. E não. Eu nunca mais fui criança outra vez. Também decidi que não mostraria mais fraquezas, para que me tornasse rapidamente um homem. E foi assim que ninguém nunca soube da minha história.
Eu fui criado no interior mais distante de Nova Primavera, cidade onde eu nasci, cresci e construí minha família. Sou filho de Armando La Selva, importante produtor rural da região desde que quase tudo aqui era só mato e terra. Meu pai era um homem de poucas palavras e escassos carinhos. Vivia para as plantações e quase nunca fazia as refeições com todos na mesa, porque sempre estava ocupado. Ele não era dono de um grande império como eu. Não soube expandir os negócios como eu soube. Mas, com toda certeza do mundo, ele me ensinou muitas coisas sobre a vida.
Da minha mãe, eu sei muito pouco. Ela quase nunca podia falar nada. Era como um robô, que andava pela casa. Era infeliz e tinha muito medo. Ela nunca teve pulso firme para enfrentar o meu pai e nos livrar de seus castigos cruéis. Era tão submissa que morreu assim, de desgosto da vida. Eu nunca soube do seu passado, nem de onde ela veio, nem que tipo de criança foi. Sei que eu era seu primeiro filho, e exatamente por isso, eu sempre quis que nos aproximassemos um pouco mais. Mas, nunca foi possível. E eu segui a vida entendendo que tinha que ser assim.

- Meu amor?! Chamou enquanto ainda esquentava os meus braços, depois de passarmos uma tarde inteira fazendo amor. Tá tão calado, que que foi? Tá pensando no quê? Me encarou. Tá com algum problema? Se preocupou. Hummm?!

Antônio On:
Quando o Caio nasceu, eu senti mais uma vez a ausência de uma mãe. Dessa vez, não a minha, mas a do meu filho. E eu me lembro de lamentar todos os dias por ele ter um destino parecido com o meu. Me lembro de romper as duras horas da noite na varanda, imaginando como seria ver o meu filho se sentir como eu. Sozinho.
Mas, tudo mudou quando eu encontrei a Irene. Ela resolveu boa parte dos meus problemas e colocou minha vida no lugar. Me deu um lar de verdade, e uma família da qual eu poderia me orgulhar. Ela transformou a minha habitação em uma casa. Um lar, uma moradia. Realizou os meus sonhos de fazer as refeições na mesa, abrir as cortinas e encarar a vida. Me deu mais um filho, depois mais uma e encheu a minha solidão de risadas e correrias pela casa. Briguei algumas vezes. Confesso. Mas, nunca mais me senti sozinho de novo. Nunca.

- Amor?! Insistiu enquanto se preparava para encarar os meus olhos. Tá tudo bem? Insistiu.
- . Sorriu, enquanto acariciava seus cabelos, antes de beijar sua testa. Eu só tava pensando um pouco.
- Pensando no quê? Reagiu curiosa.
- Na vida. Afirmou. Ou melhor, no passado.
Ela Ameaçou levantar-se, um pouco brava, por achar que eu pensava em Ágatha.
- Não. A puxou rapidamente. Não é desse passado que eu tô falando. Explicou. Eu te juro que não penso mais nela. Não penso naquela desgraçada que me envenenou. Juro.
- E que passado é esse que você tá pensando então? Encarou, curiosa.
- No meu passado. Continuou refletindo. Na minha vida. Reafirmou.
- Por que isso agora, Antônio? Encarou assustada. Tá acontecendo alguma coisa que eu não sei? Insistiu.
- Eu já revisitei o meu passado, três vezes antes. Revelou. Essa é a quarta. Alisou sua barriga. É estranho mas, eu revivo esse mesmo passado cada vez que vou ser pai de novo. Beijou os ombros nus da mulher. Talvez seja uma tentativa do destino. Concluiu. De pedir pra que eu não seja como ele. Se levantou, ainda distante, enquanto ia em direção ao banheiro.
- Ele quem? Se levantou.
- O meu pai. Gritou.

Antônio On:
A minha mãe nunca foi livre. Nunca pôde sair da fazenda sozinha ou ter uma opinião própria. Mas eu sempre quis que a Irene fosse. Eu sempre quis que ela tivesse tudo o que não teve antes. Que além de ter o meu nome, também tivesse o meu prestígio. Sempre quis que enxergassem uma rainha, nela. Uma imensidão. Uma referência. E eu digo isso com toda a segurança de quem a encara agora, nesse momento. Nua e clara. Sempre livre pra ser o que quiser aqui, dentro do nosso quarto, onde nunca tivemos segredos. Onde sempre fomos amigos, cúmplices e leais um ao outro. Eu sempre quis uma mulher como ela. Exatamente assim. E ela assumiu claramente um modelo construído dentro de mim. Dentro da minha própria história.

Irene On:
Antônio me fez livre. E eu não estou falando de quando ele me ensinou a dirigir ou me deu um cartão black sem limites e uma vida da qual sempre desejei ter. Não estou falando dos sapatos caros e luxuosos que eu nunca pude experimentar ou dos salões de beleza que nunca pensei frequentar. Não estou falando das viagens caras, da faculdade, dos sonhos e dos eventos de prestígio. Eu também não estou falando do dia em que ele me ensinou a manusear uma arma e atirar sem medo caso os peões vacilassem na vigilância e alguém decidisse invadir a nossa casa enquanto ele estivesse resolvendo as burocracias da fazenda em São Paulo. Eu tô fazendo de liberdade pra ser quem eu quiser. Da liberdade de ter gostos próprios. Da liberdade de se auto construir. E eu nunca entendi como um homem tão poderoso, pudesse me dar tanta liberdade assim.

- Antônio?! Encarou o homem enquanto ele voltava para a cama. Tá tudo bem mesmo? Eu tô angustiada com esse seu silêncio. Passou um creme hidratante na barriga, enquanto o encarava pelo vidro da penteadeira. Eu nem sabia que você ainda pensava no seu pai.
- Tá tudo bem. Afirmou. Tô falando pra você. Se aproximou ao beijar a testa da esposa. Fica angustiada não. Se abaixou. Nem fica com medo. Pediu. Logo logo nossa bonequinha vai chegar e eu tô ansioso. Omitiu. É só isso. Eu ainda penso nele às vezes. Revelou. Em como seria diferente se ele tivesse sido diferente. Deu de ombros. Em como me entenderiam se soubessem o que eu já tive que passar nessa vida e... É só pensamento. Desistiu de explicar.
- É só isso mesmo? Se virou para encará-lo, enquanto o homem a puxava para perto.
- É. A abraçou. Eu juro que é.

Antorene: The After Onde histórias criam vida. Descubra agora