Incapaz

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[• Corumbá (MS), 2023 •]
- Seu bebê vai muito bem Irene. Você acabou de entrar na 17° semana de gestação. Continuou alisando sua barriga, enquanto passava mais um pouco do gel gelado que ela sentia todos os meses. Mas, eu estou te achando um pouco anêmica. Você tem se alimentado bem? Analisou.
- Sim. Mentiu, já que desde que foi ameaçada por um dos capangas mais perigosos que Antônio já teve, não conseguiu mais viver em paz.
- E os enjoos? Já passaram? Você me disse que os primeiros meses foram muito difíceis pra você.
- Sim, passaram. Continuou encarando a tela, impaciente. Doutor, o senhor acha que já é possível saber o sexo? Perguntou o que queria desde o momento que havia chegado ao consultório.
- É possível saber sim. Você já quer saber ou prefere fazer a revelação com toda a família? A encarou, enquanto ela tentava disfarçar a enorme frustração de estar passando por tudo isso absolutamente sozinha. Luigi até havia se oferecido para acompanhá-la mas, ela ainda achava muito arriscado que ele viesse tanto a Corumbá.
- Eu quero saber. Fingiu sorrir. Planejo fazer uma... Uma surpresa ao meu marido. Mentiu novamente, enquanto tentava aliviar seu próprio sofrimento.
- Bom, você espera uma menina. Uma menininha muito bochechuda, por sinal. Anunciou, satisfeito.
- Menina? Demonstrou choque imediato.
Uma menina. Mais uma. E mais uma vez, dentre todas as outras, Irene se sentiu amedrontada. É que, depois de todos os abusos que sofreu, ela sempre quis ter apenas meninos. Achava que eles eram menos expostos aos olhos sedentos de um predador sexual. Pelo menos, foi o que viu acontecer na sua própria casa, quando ela era abusada, vendida e trocada, enquanto seu único irmão, Dirceu, jamais precisou passar por nada disso. Ele mesmo, que recentemente, descobrira ser o abusador de sua filha, Petra. A menina que ela teve, mas não foi capaz de proteger.
- Irene?! Você está bem? Parece um pouco pálida. Insistiu, enquanto suas memórias a levavam para uma viagem no tempo, ao encontro de um momento em que se sentiu da mesma forma antes.

[• Nova Primavera (MS), 1997 •]
- E aí doutor? Já dá pra saber se é menino ou menina? Perguntou impaciente, enquanto segurava uma das mãos da esposa.
- Já, Antônio. Já dá pra saber com exatidão sim. Vocês terão uma menina. Anunciou.
- Olha aí, não te disse? Beijou sua testa, encantado. Não te disse que dessa vez era uma menina que vinha aí? Uma menina. Repetiu, enquanto Irene o encarava sem reação. Minha menina. Alisou seu ventre, ainda melado de gel. Eu tô feliz demais da conta. Externalizou.

[• Corumbá (MS), 2023 •]
- Irene? Chamou insistente. Você está sentindo alguma coisa? Parece um pouco agoniada.
- Eu... Eu estou um pouco tonta doutor. O senhor pode pegar um pouco de água pra mim, por favor? Acredito que seja o calor. Tentou sorrir, enquanto voltava ao passado, mais uma vez.

[• Nova Primavera (MS), 1997 •]
- Eu acho que ela deveria se chamar, Petra. Sonhou. Um nome bonito, e raro por essas bandas. O que acha? Petra La Selva. Não acha que combina? Sugeriu animado.
- Eu não sei Antônio. Tocou a cabeça com as duas mãos. Podemos resolver isso depois? Encarou finalmente o marido.
- Ô Irene, o que que foi? Cê veio calada no carro... Não tô te achando muito animada não. Pressionou. Pensa que eu não vi sua reação no consultório? Você não ficou muito feliz com a descoberta do sexo do bebê, não é isso? Não é por isso que você tá assim?
- Ai Antônio, não fala bobagem, eu só preciso subir e tomar um banho. Acordamos muito cedo para ir a dourados. Acho que eu tô um pouco cansada. É só isso. Mentiu.
- Não. Quase gritou. Pode ir parando aí. Você vai me dizer o que é que tá acontecendo uai. Tocou seu braço, devagar. Porque você não quer uma menina, Irene? Eu sei que pareço desatento algumas vezes, mas eu não sou não. Você sempre fugia do assunto quando eu te dizia que cê tava esperando uma menina. E digo mais... Você nunca me deu uma resposta quando eu disse que sempre quis ser o pai de uma moça. Continuou questionando.
- Antônio?! Por favor? A gente pode falar sobre isso depois? Tentou fugir. Eu já disse, estou cansada e...
- Eu não entendo. Continuou. Tudo que é mulher que eu conheço, sonha ser mãe de uma menina. Mas você...
- Por acaso você já se esqueceu de tudo o que eu passei por ser uma mulher? O calou, como nunca pensou que conseguisse. Esqueceu de todos os abusos que eu sofri na infância e que me tiram o sono até hoje? Chorou. Não Antônio, eu não queria uma menina. Revelou. E só de pensar, que eu vou ter uma, todo aquele medo que eu sentia, volta e me paralisa. Revelou. Eu não queria colocar mais uma menina no mundo. Gritou. Mais uma possível vítima de toda essa maldade que eu já senti. Se sentou no sofá, abalada. Eu senti na minha pele, Antônio.
- Ei, calma. Acolheu. Me desculpa, eu não tinha pensado nisso. Alisou seus cabelos. Mas, o fato de isso tudo ter acontecido a você, não quer dizer que vai acontecer com a nossa filha. Tentou tranquiliza-la. Nós vamos protegê-la. Prometeu. Vamos cuidar dela e vamos garantir que ela seja a menina mais feliz e segura do mundo. Viu? Tentou acalma-la. Eu te garanto isso.
- Antônio... Tentou argumentar.
- Eu sou um pai, Irene. Eu sou o pai dela. Eu sei que é difícil confiar. Mas, eu amo essa menina demais. Acredita em mim, eu nunca vou machuca-la. Nunca. Prometeu. Enquanto beijava-lhe a testa.

[• Corumbá (MS), 2023 •]
A mulher chorava, enquanto dirigia pelas ruas estreitas da cidade. Sabia que não poderia ver seu filho crescer, e por isso, idealizou que ter um menino tornaria tudo mais leve. Agora, voltava a ter medo. Há alguns meses, soube de todos os abusos sofridos por Petra. E depois, recebeu o maior golpe de sua vida. A revelação de que Dirceu, seu único e amado irmão, era o responsável por todo o sofrimento da filha. Não conseguia confiar em muitas pessoas. Mas, precisava. Se sentia incapaz de criar uma menina de novo. Mas, se lembrou que não a criaria. Fechou os olhos, e torceu para que Petra e Luigi fossem bem nisso. E achava que iriam... Mesmo assim, nunca julgou tão difícil imaginar que essa menina não teria seus cuidados. E isso era tão dilacerante, porque, mesmo tendo medo de dar a luz a uma menina, ela já a amava, de forma inevitável. Um amor desesperado e capaz de dar a própria vida por ela. Um amor que transcende todos os limites. O amor de mãe.

Antorene: The After Onde histórias criam vida. Descubra agora