1 - Meu Caos

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Um barulho muito irritante começa a se repetir em minha cabeça, me tirando daquele sono profundo que entrei a, o que? 20 minutos atrás?

"Pi, pi, pi, pi"

— Inferno! – praguejo me virando para o outro lado da cama e tampando meus ouvidos com o travesseiro.

— Olha a boca! – ouço meu padrasto gritar lá de baixo.

"Pi, pi, pi, piiii"

Por fim me dou conta que o micro-ondas me tirou do meu descanso, e Victor deixou a comida ou sabe-se lá o que esquecido lá dentro. Típico do seu feitio, meu padrasto é totalmente ao contrário de mim, eu que funciono na marcha lenta, já Victor está sempre ligado no 220V! Agita sua mente e a minha ao mesmo tempo, mas acredito que essas diferenças que nos façam ter uma convivência tranquila, se assim posso dizer.

— Vai se atrasar mocinha, faltam 40 minutos... – ouço Victor afirmar

Dou um pulo da cama — Como assim? 40 minutos? Mas fui dormir a poucos minutos atrás! Nossa! Essa noite passou voando ou eu simplesmente entrei em coma.— vou direto para o banheiro, cambaleando em meus sapatos que sempre deixo no meio do quarto, ainda vou me matar com isso, faço minha higiene pessoal o mais rápido possível e corro para meu closet, modesto, que eu mesma criei vendo umas referências na internet, escolho meu vestido favorito, prezo muito pelo conforto então ele será perfeito.

Já vestida me olho no espelho e vendo meu reflexo penso o que combinaria? O vestido é amarelo clarinho com várias margaridas espalhadas, deixa meus ombros a mostra e tem presilhas na cintura. Como para uma garota magra eu não sirvo, prefiro sempre vestidos que me deixam mais confortável, algumas roupas me apertam ou me sufocam demais por causa dos meus quilinhos a mais, talvez seja só coisa da minha cabeça, mas cada um com as suas manias. Já sei, meu all star branco, nunca falha com nada! Tenho 1,70 de altura, então opto normalmente por calçados mais baixos, vulgo algum tênis.

Agora vem a pior parte, dominar esse meu cabelão revoltado, amo meus cachos, mas nos dias de correria, no caso dias que dormi demais, prendo em um coque alto e deixo alguns fios soltos na frente do rosto e vamos a luta.

— Onde coloquei meu creme? – murmuro derrubando uma pilha de roupas que estavam em cima da cômoda. Normalmente deixo tudo organizado, mas com semanas corridas como essa esta sendo não consegui colocar minhas roupas no devido lugar, que seja! No sábado eu arrumo.

— Achei – espalho a loção pelos braços e pernas e me direciono para o andar de baixo onde, acredito eu pelo cheiro de misto quente, Victor me espera com o café pronto.

— Bom dia, bela Lilith, dormiu mais que a cama? – Victor pergunta me servindo uma caneca de café recém feito. Não sou uma pessoa muito amorosa, digamos que tenho dificuldades de demonstrar afeto, mas sou grata e consigo reconhecer todo o cuidado que Victor tem comigo, desde o dia mais triste da minha vida, apenas ele tem se mantido ao meu lado até os dias de hoje.

Mamãe e meu padrasto casaram-se quando eu tinha 5 anos, desde então Victor vem fazendo o papel do meu genitor, que no caso não conheço pois desde que descobriu que eu viria ao mundo resolveu sumir do mapa, já minha mãe, Olívia Bianchi, me protegeu com unhas e dentes e me criou sozinha até meu 5 anos. Trabalhava em uma lanchonete, lugar onde conheceu Victor e a partir dali ele nos acolheu e deu o apoio que nos faltava, ela faz falta, nem parece que já fazem 3 anos que faleceu...

— Lilith? Está ai?— Saio do transe e me direciono a Victor que está parado na minha frente com a caneca de café.

— Ah sim, desculpe pai, acho que ainda não acordei direito – dou um breve sorriso e pego a caneca me aconchegando em nossa pequena mesa de madeira, nosso lugar favorito da casa. Eu e mamãe morávamos de favor na casa de uma amiga sua, mas como era muito nova não me recordo muito bem, mas desde que conheceu Victor, ele nos trouxe para esta casa, nossa casa. Luxuosa? Jamais foi e nem tenho vontade que seja, aqui tem um pedacinho de cada um de nós na decoração. Pequena e aconchegante. Mamãe amava plantas e até hoje mantemos elas nos cantos da casa. No andar de baixo do chalé ficam a sala com um pequeno muro divisional para a cozinha, um banheiro e o quarto do Victor. Já no segundo andar ficam meu quarto, o das visitas e despensa.

— Vi que passou do horário, andou lendo mais do que devia noite passada? De novo? – Aceno com a cabeça e continuo tomando o líquido quente que vai me acordando aos poucos.

Desde de quando minha mãe faleceu, adquiri um hobby da leitura, me perco nos livros e revistas tentando fugir dessa realidade, Victor já acha que tudo que é demais, não é bom, então sempre tenta repreender esse meu vício pelos livros. Talvez por eu não saber até hoje o que ocasionou a morte da mamãe, engatilhou uma sequência de ataques de ansiedade em mim, por isso a tentativa de fuga dessa realidade. Encontramos ela na varanda de casa, desacordada, enfim, morta. Foi levada para o hospital da cidade mas constataram um mal súbito. Sem avisos, sem rodeios, ela me deixou.

Não há um único dia que eu não recorde quando ficávamos deitadas embaixo da macieira que temos aqui em nossa chácara. Mamãe gostava de tomar sol enquanto observávamos o céu, eu na verdade observava ela. Sempre a achei linda, Seu cabelo era ondulado, castanho claro, pele branca, mas bronzeada, seus olhos negros contrastavam com seu rosto fino. Lábios vermelhos como as maçãs que comíamos ali mesmo. Dizem que herdei seu sorriso e seu olhos grandes, que saudade. Com tudo isso, única conclusão que tive do meu genitor é que era negro.

— Esta elegante hoje, vai onde? – Pergunto ao moreno que terminara de fazer os mistos quentes e despeja um em meu prato. Victor sempre teve postura, mas seu estilo nunca combinaria com um empresário ou magnata, gostava de uma bela calça de abrigo e uma camiseta simples, mas hoje estava diferente. Seu cabelo era mais para o crespo, ao contrário do meu, cacheado. Tinha um rosto com maxilar bem marcado, a pele em um caramelo claro e sempre que sorria seus olhos quase fechavam. Victor era uns 10cm mais alto que eu, então pode-se dizer que para feio meu padrasto nunca serviu, por isso minha mãe deve ter-se apaixonado logo por ele.

— Elegante? Hahaha, sabe que esse não sou eu princesa, mas sim, tentei colocar algo mais adequado já que terei que conhecer a nova moradora da cidade, já pediu meus serviços pra instalar algumas coisas.

— Entendi, vá que queira um marido de aluguel pra sempre – digo dando um sorriso a ele.

— Não diga isso, eu não terei mais ninguém – Ele olha fundo nos meus olhos e noto o vazio que jaz ali, a partida da minha mãe não afetou apenas a mim

Levanto da cadeira e saindo desse momento pesado pego minha mochila, dou um aceno a Victor e vou em direção a varanda, pego minha bike e me apresso em pedalar se não chegaria atrasada de novo no serviço e a velha bruxa ia piar nos meus ouvidos!

Sinto a brisa batendo e os raios de sol trazendo vida a essa cidade parada, por momentos é tão bom estar viva mas por outros me sinto enterrada neste lugar, a monotonia me enlouquece as vezes. Pedalando a uns 5 minutos vejo que nada muda, sempre os mesmos vizinhos, terrenos enormes e distantes, mini chácaras praticamente. Mesmas arvores, mesmos animais, mesmos comércios quando chego ao centro da cidade, Santa Luzia, esquecida ao lado leste da Itália, que nome maravilhoso para se dar a esse lugar que ninguém enxerga, literalmente.

Encosto minha bicicleta no mini estacionamento em frente da lanchonete, sim, trabalho como garçonete, no mesmo lugar que minha mãe trabalhou. Cidade pequena não nos da muita opção de vida ou crescimento. Cantina Del Santo, tudo nessa lanchonete era em vermelho, poucas coisas em branco. Era pequena mas acomodava várias mesinhas retangulares, é o que tinha, é o que tem que ser, por enquanto. Entro apressada me dirigindo ao vestiário, passo pela velha bruxa que já está no caixa do comércio me fitando.

— Atrasou 8 minutos, Lilith – diz ela com a cara enrrugada por trás daqueles óculos de grau vermelho, céus que coisa mais feia, seus cabelos grisalhos sempre uma bagunça, que ela tentava disfarçar com a touca do uniforme. Lavínia devia beirar seus 65 anos, baixinha e um humor para poucos, mal humor para muitos.

— Eu... sei, eu sei Dona Lavínia, desculpe.

Ela só me encara enquanto corro pro vestiário, preciso controlar meu sono, ser repreendida por ela logo em uma sexta feira que estou exausta da semana, ninguém merece. Visto meu uniforme que é bem menos confortável que meu vestido, todo fechado e com ele tenho a sensação que fico maior do que já sou, marca muito minha barriga, certas roupas me dão gatilhos e esse bendito uniforme é um deles.

Depois de pronta volto as bancadas da lanchonete e inicio meu trabalho, a poucos minutos depois ouço meu nome ser chamado da porta de entrada:

— Lilizinha, meu arco íris, pode ficar feliz pois já cheguei – dou um sorriso de canto e jogo um guardanapo em sua direção, sinceramente, ele não está errado quando afirma que me faz feliz.




O Pior de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora