4

98 13 3
                                    

A alvorada na aldeia sempre trazia consigo uma melodia tranquila, uma sinfonia de pássaros e o sussurro do vento entre as folhas das árvores. Hoje, no entanto, o canto da manhã parecia abafado, como se o próprio sol estivesse hesitante. Quando o primeiro raio de luz tocou meu rosto, eu já estava acordada, preparada para o dia que se desenhava em tons de urgência e inquietação.

A vida na aldeia nunca é monótona, mas havia algo particularmente pesado no ar hoje. A notícia chegou como um sussurro desesperado, uma chamada que fez meu coração acelerar: um dos nossos vizinhos estava com febre alta, e Miray precisava de mim no centro da aldeia.

Vesti minha túnica de linho simples, peguei a bolsa com remédios que Miray me confiara e saí pela porta de casa, sentindo o frio da manhã ainda presente em meu rosto. Os primeiros raios de sol dançavam sobre o solo, mas meu olhar estava fixo no caminho à frente. A aldeia estava começando a se movimentar, com as pessoas saindo de suas casas e preparando suas tarefas diárias. No entanto, o alvoroço não era apenas uma rotina, mas uma preocupação palpável. Todos comentavam sobre os uivos da noite passada.

O chão coberto de lama, sujava minhas botas a cada passo. A manhã estava fria, e o ar estava carregado com o cheiro de fumaça dos fogões a lenha, misturado com o aroma terroso das madeiras e das ervas que os habitantes usavam para se aquecer.
O frio penetrava até os ossos, tornando cada respiração visível no ar gelado. Eu andava devagar, sentindo o peso das roupas finas e já usadas que mal aqueciam meu corpo. Estava abaixo do peso, e o frio parecia intensificar a sensação de fraqueza que eu carregava. O chão de pedra era irregular, e as casas de madeira, com telhados inclinados cobertos por uma fina camada de neve.
Homens e mulheres carregavam cestos com alimentos escassos ou cortavam lenha para o calor. As crianças, apesar da frio, corriam e brincavam nas ruas cobertas de gelo, suas risadas e gritos de alegria contrastando com o ambiente sombrio e difícil.

Eu estava quase na casa de um dos pacientes de Miray quando o burburinho crescente que emanava do centro da aldeia me desviou do meu caminho. A movimentação era incomum, e o som das vozes e dos passos acelerados fez com que eu me sentisse compelida a investigar.

A praça principal da aldeia era um espaço aberto, cercado por algumas construções mais antigas e robustas. Uma pequena fonte no centro, agora congelada, era adornada com um par de aves de pedra esculpidas. Em torno dela, as pessoas se amontoavam, olhando fixamente para algo no chão. Quando finalmente consegui abrir espaço para ver o que estava causando tamanha comoção, percebi que se tratava de um grupo de aldeões reunidos ao redor de um corpo de um jovem.

A visão me atingiu como um soco no estômago. O jovem estava pálido e deitado em um colchão improvisado de palha e cobertores, com sinais de uma febre alta visíveis em seu rosto. O caos e a tensão pairavam no ar. Alguém na multidão estava gritando instruções, e outros tentavam dar socorro, mas era claro que a situação estava fora de controle, alguns guardas estavam tentando afastar as pessoas. Uma mulher chorava no meio delas, desesperada.

— O que aconteceu? — pedi a um dos homens que estava ajoelhado ao lado do jovem, tentando acalmá-lo. Ele falou sem olhar para mim, A frustração era evidente em seu olhar distante e na maneira como ele balançava a cabeça, os ombros caídos e a postura encurvada como se o peso do mundo estivesse sobre ele.— Descobri ele assim — respondeu ele com voz trêmula. — Dizem que ele estava vagando pela floresta, não chegou a tempo do toque de recolher. Querem mandá-lo de volta.

Meu coração disparou ao ouvir isso. Se ele tivesse passado a noite na floresta, então não havia chance de que o destino pudesse ser diferente. Eu olhei ao redor e vi Miray, ela  estava tentando abrir caminho através da multidão. As pessoas saiam do caminho quando ela passava. Ela também deve ter ouvido, mais pessoas chegavam, a multidão se acotovelando para ter a chance de dar uma espiada no garoto. Fazia muito tempo que alguém tinha ficado do lado de fora e sobrevivido.

— Miray! — chamei, tentando me aproximar dela.

Ela se virou, os olhos cansados, mas cheios de determinação.

A aldeia estava lutando contra mais do que apenas a fome e o frio — estava lutando pela sobrevivência em uma batalha que parecia estar  perdendo a cada dia. O burburinho no centro da aldeia era um lembrete cruel de quanto a situação estava fora de controle e de como a esperança estava se tornando uma moeda cada vez mais rara.

O olhar atento de Miray foi a minha âncora em meio ao caos. Enquanto as pessoas continuavam a murmurar e oferecer sugestões desesperadas, eu sabia que nossa luta estava longe de terminar e que o amanhã poderia trazer mais desafios do que já enfrentamos. Apertei sua mão, o suor fazendo minha palma deslizar.

O rapaz estava pálido e tremendo, sua febre queimando seu corpo, uma febre diferente daquela que Miray tratava.

A dor era visível em seu rosto. Era evidente que ele tinha passado a noite na floresta, seu rosto estava sujo e coberto de sangue e algo ainda mais sombrio estava em jogo. Seus olhos estavam vidrados, ocasionalmente piscavam de maneira inquieta, como se estivessem lutando contra algo interno.

O som de lamento cortava o ar gelado, misturando-se com os murmúrios preocupados dos outros aldeões.

Um homem com uma expressão severa e autoritária, trouxe um silêncio abrupto. Ele abriu caminho através da multidão, seu olhar determinado e inflexível. Com uma voz que não admitia contestação, ele se voltou para as pessoas reunidas.
Seus olhos correndo pelas pessoas.

— É contra a lei permitir que um infectado fique entre nós. Precisamos agir antes que seja tarde demais —  sua voz transmitiu uma urgência fria.

Os guardas, com um esforço combinado, levantaram o jovem, que estava em um estado quase inconsciente, o levaram em direção aos portões da aldeia. A mãe desesperada, continuava a clamar, seu sofrimento refletido na maneira como se debateu contra os guardas. A multidão, ainda amontoada, observava em silêncio aterrorizado, enquanto Theron lançava um olhar decidido para a cena.

— Meu filho! Ajudem meu filho! É só um menino!

— Ele foi amaldiçoado! Só a morte trará alívio para ele. Todos sabem das regras.

O jovem foi colocado novamente à beira da floresta, Theron fez um gesto para os guardas e um deles sacou um punhal da bainha. O rapaz foi segurado pelos outros dois, seu choro fazendo meu coração doer. Com uma investida firme, o punhal encontrou o peito do garoto. Seu corpo amoleceu sendo jogado no chão pelos guardas.
Um grito feminino cortou o ar, os pássaros voando para longe. Desviei o olhar, meus olhos embaçados pelas lágrimas que não permiti que caíssem.

A lei da aldeia não deixava espaço para compaixão nesse aspecto; a segurança da comunidade era priorizada acima de tudo, mesmo que isso significasse condenar um de seus próprios.

O choro da mãe do garoto encheu a praça. As pessoas começaram a se dispersar, não havia mais o que ser feito.

Senti um arrepio e ao olhar ao redor, percebi os olhos frios do líder da aldeia sobre mim. Ele sempre parecia estar me observando, esperando algo.

Theron. Sua palavra era uma ordem, passava por cima de quem estivesse na frente não importava o quanto chorassem ou implorassem. Ele faria qualquer coisa para cumprir a lei.

E a mais importante delas. 

Nenhum dos amaldiçoados seria deixado vivo.


A Herança Da Lua Onde histórias criam vida. Descubra agora