Terminei de secar as mãos e olhei para Miray, que agora despejava o restante da sopa em pequenos potes de barro, deixando-os ao lado da lareira para que mantivessem o calor. Ela não disse mais nada, mas o silêncio entre nós era compreensível. Estávamos juntas há tanto tempo que palavras eram desnecessárias. Sabíamos o que a outra pensava, sentia. Sabíamos o que viria — uma luta silenciosa pela sobrevivência.
Peguei a bolsa que Miray me dera, sentindo o peso simbólico, e a guardei sobre minha cama. Amanhã... sim, amanhã eu enfrentaria a floresta de novo, e dessa vez mais fundo, além das áreas que eu conhecia bem. Precisávamos de mais ervas, mais suprimentos, algo que desse ao menos uma chance aos doentes da vila.
Saí para o lado de fora da cabana por um momento, precisando de ar. O vento frio da tarde soprou contra meu rosto, trazendo consigo o cheiro de terra úmida e madeira envelhecida. O céu já começava a ganhar tons alaranjados, sinalizando o fim de mais um dia. As pessoas começaram a se preparar para a noite. Os portões da vila logo fechariam, e com eles viria a segurança — ou a ilusão de segurança. As madeiras que nos separavam do mundo lá fora pareciam mais frágeis a cada dia, como se soubessem que, eventualmente, cairiam.
A vila estava quieta agora, um contraste gritante com a movimentação de mais cedo. Todos já se recolhiam, temendo o que vinha quando o sol se punha, os homens voltavam para casa após passar dia lá fora. A lembrança dos uivos da noite anterior ainda reverberava em meus ouvidos. Os lobos, sempre à espreita, esperando um deslize. E hoje, com a morte do garoto, a tensão parecia ainda pior.
Senti o estômago se contrair de leve, lembrando-me que, apesar da sopa, eu ainda não estava saciada. A fome, nos últimos tempos, se tornara uma companheira constante. Porém eu não reclamava, Mairay nunca me deixou dormir sem comer. Mesmo nos piores dias ela sempre encontrava algo. Todos na vila sofriam com a fome, mas para os doentes, para os fracos, era uma sentença de morte. Ficar sem comida era apenas o início — a febre logo tomava conta dos corpos enfraquecidos, e então, a única coisa a fazer era esperar. Os animais estavam cada vez mais escassos, e o inverno se aproxima.
Fechei os olhos por um momento, tentando acalmar a mente. Foi então que a memória surgiu, quase como um sonho, nítida e intensa.
Eu era uma criança, correndo pela floresta com meus pais. Os dois sorriam, sempre com aquele brilho nos olhos que eu costumava achar mágico. Nós íamos até um pequeno riacho, e eu colhia flores enquanto eles conversavam.
Naquele dia porém parecia que discutiam algo, tinha sido assim nos dias antes de morrerem. Minha mãe queria ir embora, para a vila mais próxima provavelmente. Porém meu pai não concordava em ir. Eu estava mais preocupada em correr atrás das borboletas, mas me lembrava de ouví-los. "Eles nunca vão nos aceitar, Ezlin!" Meu pai não era alguém que gritava porém nesse dia ele elevou a voz para minha mãe. Me lembro de como os ombros de mamãe estavam caídos e tremiam, os braços apertados ao redor do corpo como se para segurar o choro. "Você não sabe disso! Connan, me escuta. Vai chegar o dia em que não esperaram mais. Não vou deixar Evrin crescer com medo!"
Naquela época, eu não entendia o porquê dessas palavras, mas agora, tantos anos depois, elas faziam sentido. Naquele dia na floresta, eu ainda era inocente, longe das tragédias que viriam, longe dos lobos que agora dominavam nossas vidas. Não entendia o real significado das coisas. Do porquê eu não podia sair sozinha para brincar fora dos muros.
Alguns dias depois meus pais foram arrastados a noite para fora. Meus gritos deixando minha garganta doendo por dias. Miray me segurava com força, tentando impedir que eu fosse atrás deles.Eu odiava Theron desde então.
Mas, mesmo com tudo o que aconteceu, a floresta continuava a ser um lugar de paz para mim — um refúgio em meio ao caos.
Abri os olhos, voltando ao presente, e me virei para entrar novamente na cabana. Precisava me preparar para o que viria, tanto amanhã quanto nos dias seguintes.
Ao entrar, Miray já estava sentada em sua cadeira de balanço, um pedaço de tecido tricotado nas mãos. Ela ergueu o olhar por um breve momento, como se quisesse confirmar que eu estava bem, antes de voltar ao seu trabalho.
— Está escurecendo, menina. Vá se lavar antes que esfrie demais — ela comentou, como sempre fazia quando o sol começava a cair no horizonte.
— Eu sei — respondi, fechando a porta atrás de mim e sentindo o calor do fogo me envolver mais uma vez.
A cabana estava aquecida pelo fogo na lareira, que crepitava suavemente, iluminando o pequeno espaço com uma luz bruxuleante. A sopa que Miray preparara ainda perfumava o ar, mas agora, o caldeirão fervia apenas com água limpa.
Estava exausta, coberta de sujeira e lama da floresta, e meu corpo doía de cansaço. Precisava de um banho. Miray, silenciosa como sempre, já sabia o que eu faria. Ela continuava a tricotar, deixando-me à vontade.
Peguei um pano limpo e um balde de metal, usando a pequena concha para despejar a água quente do caldeirão. A água escorria no balde, cheia de vapor, e seu calor imediato era convidativo, uma promessa de alívio.
Era como se, por um breve instante, eu pudesse me desligar de tudo – da fome, do medo, dos uivos que começavam a ecoar à distância.Fui para o canto da cabana, onde um pequeno espaço era reservado para essas horas de privacidade. Não havia luxo ali, mas isso não importava. Puxei o lençol simples que usavamos como cortina. Despi-me devagar, sentindo o peso das roupas sujas caindo ao chão, revelando a pele marcada pela correria do dia. Alguns arranhões dos galhos da floresta ainda ardiam levemente, lembrando-me de que cada incursão por aquele lugar deixava suas cicatrizes.
Eu sabia que o dia seguinte traria novos desafios, mas naquele momento, na cabana aquecida e iluminada pelo fogo, eu me permiti relaxar, ainda que por pouco tempo.
Derramei a primeira porção de água sobre os ombros. O calor escorrendo pela pele trouxe um alívio imediato, relaxando meus músculos tensos. Peguei o sabão que Mairay mesma fazia, um tanto áspero, mas eficiente, comecei a esfregar suavemente a pele, lavando a sujeira que havia se acumulado ao longo do dia. A espuma surgia e levava embora o peso das horas passadas na floresta. O toque áspero em minhas mãos soltava o aroma conforme eu esfregava, liberando uma mistura de lavanda e alecrim, plantas que Miray sempre usava em suas receitas. Lavei os cabelos com cuidado, molhando as longas mechas escuras e massageando o couro cabeludo, deixando que a água quente levasse embora qualquer vestígio de terra e folhas.
Joguei mais água quente sobre a cabeça, enxaguando o sabão. A água escorria pelo meu rosto, pelos ombros e pelo corpo, levando consigo o resto da sujeira. Cada respingo era um alívio, e a sensação de frescor começava a tomar conta. Ao terminar, senti-me revigorada, como se estivesse pronta para enfrentar o mundo mais uma vez.
Enxuguei-me rapidamente com um pano limpo, vestindo uma camisola simples e confortável. A sensação de estar limpa, finalmente livre da sujeira e do cansaço. Ainda sentindo o calor da água no corpo, caminhei até a pequena mesa de madeira no canto da cabana, onde mantinha meus poucos pertences. Em cima, estava o pente velho, de dentes largos, que usava desde criança. Sentindo o peso familiar nas mãos, me sentei na beira da cama improvisada de palha.Olhei para Miray, que me observava silenciosa, como sempre. O calor da lareira ainda mantinha a cabana aquecida, e o crepitar do fogo era o único som além da respiração calma da velha curandeira.
Enquanto penteava, meus pensamentos vagavam. O dia tinha sido longo, e apesar de agora estar limpa e quase pronta para descansar, a sensação de inquietação ainda rondava meu peito. As coisas na aldeia estavam cada vez mais difíceis, e a ameaça parecia estar sempre à espreita, pronta para atacar a qualquer momento.
Terminei de pentear os cabelos, deixando-os soltos para secarem. O pente foi deixado de lado, sobre a mesa, e suspirei mais uma vez.
Caminhei de volta para perto da lareira, sentando-me novamente no banquinho, os cabelos ainda úmidos caindo sobre os ombros. Marga lançou um olhar rápido em minha direção, seu silêncio habitual pairando no ar.
— Pronta para descansar? — perguntou ela, a voz suave e familiar.
— Sim, estou — respondi, permitindo-me um pequeno sorriso. Mas, no fundo, sabia que o descanso seria breve. Amanhã, a floresta me aguardava novamente.
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A Herança Da Lua
WerewolfNo crepúsculo do tempo, quando a lua azul iluminar a noite e o vento sussurrar entre as árvores antigas, os lobos que caminham entre os homens despertarão. Na escuridão, um novo lobo surgirá, com olhos de fogo e coração de gelo, trazendo com ele a...