XLII

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A boca dela era doce como a mais suculenta tâmara. Eu lembro que essa sensação eu tive quando a beijei pela primeira vez. A jovem inocente e cheia de sonhos. Cheia de medos. Eu poderia ler o Alcorão inteiro e isso não me levaria perto do paraíso como Giovanna me leva. Por tudo que havia de mais sagrado, eu me sentia salvo nos braços dela. E o jeito como ela me correspondia me provava que de alguma forma eu ainda a impactava, mesmo que no fundo, mesmo em um lugar que ela me mantivesse preso pelo mais perverso crime.

O crime de mandá-la para longe.

De protegê-la.

Eu dou um passo para frente, a empurro até que ela esteja encostada no batente da porta. Giovanna agarra meu cabelo, seus dedos se aventuram pelos fios que um dia conheceu tão bem.

Ela se afasta para um pouco de ar e eu respiro fundo, trêmulo. Abro meus olhos e a encontro me encarando. Minhas mãos a soltam, eu sinto bem o que vem por ai.

O tapa arde em minha face, mas não tanto quanto meu peito arde por ela.

Fechos meus olhos e olho para baixo.

— O que pensa que está fazendo, Alexandre? O que pensa?

— Giovanna, me desculpa, eu não sei o que...

— Se você pensa que pode aparecer aqui como se nada tivesse acontecido, se acha que é com um beijo que vai me ter de volta, se ao menos tem essa ideia ridícula de que eu posso...

A pego com força pelo braço e a olho com firmeza. Ela para de falar.

— Acredite, Giovanna. Ninguém vai se torturar mais com esse beijo do que eu. Sou eu que venho me castigando por anos cheirando as roupas que deixou para trás, que visita nossas fotos em Florença, sou eu que não sei o que é dormir direito há anos... então eu sei, eu sei, como a merda desse beijo vai me torturar. Mas eu sou um masoquista quando se refere a você. É como uma droga. Então não venha me dar lição de moral, eu sei o que eu fiz.

Ela toca meu pulso e faz força para se livrar de meu aperto. Eu a solta devagar, dou um passo para trás, me encosto no outro batente. Nos olhamos, feridos de corpo e alma, eu não consigo imaginar o que se passa pela cabeça dela, logo eu, que conseguia ler seus olhos para um livro.

Giovanna desvia o olhar.

— Eu vou... conversar com Emir.

— Está bem, me avise se ele... quiser me ver.

— Aviso. — ela fala sem me olhar, cruza os braços.

Eu caminho para longe dela, entro no carro rapidamente antes que eu cometa mais algum erro. Dirijo para o mais longe possível daquela casa. Eu consigo ouvir a risada dela exalando de cada parede, dos dias em fomos felizes ali. E agora consigo imaginar como Emir vinha sendo feliz naquela casa. Ao menos antes de eu chegar.

Sinto as lágrimas caírem pelo rosto sem reserva alguma. Seco os olhos para poder dirigir direito, mas consigo enxergar a cena na minha frente, o jeito como o menino me olhou, assustado, talvez decepcionado. Talvez ele tenha imaginado o pai tão diferente, mais alto, mais forte, menos cansado pela vida.


Eu fecho a porta de casa e apoio minha cabeça nela, tonta com os últimos minutos. Minha boca formiga, anestesiada pelo beijo forte que só Alexandre tinha. Minha nuca estava em chamas pelo toque de seus dedos, e meu coração estava tão acelerado que parecia que ia sair pela minha boca.

Maldito. Maldito seja ele.

Her acı zamanla geçmez
Her giden mutlaka dönmez

Nem toda dor passa com o tempo
Nem todo mundo que parte retornará


— Querida? Você está bem? — escuto a voz de Canana atrás de mim e me endireito com o susto.

Olho para ela com medo do que possa ter visto, mas pela expressão preocupada, vejo que não viu nada de mais. Respiro fundo, passo as mãos pelo cabelo, confusa, perdida. Me aproximo dela e Canan sabe. Abre os braços e me acolhe em seu calor de mãe.

Eu não consigo imaginar o que minha mãe poderia me falar em uma hora dessas. Ela era dura, séria, amorosa, porém jamais deixaria eu me encontrar nesse estado por alguém, disso eu tinha certeza.

Canan, porém, me deixava sentir, até mesmo quando eu não queria. Ela dizia que fazia bem, era o seu jeito de quem já passou por muitas coisas na vida. Acaricia meus cabelos, sussurra palavras de conforto, e aos poucos vai me guiando até a cozinha para uma xícara de chá. Eu sento na bancada e espero em silêncio, refletindo sobre o que eu gostaria que ela soubesse.

Quando finalmente ela senta no banco ao meu lado, eu perco a voz.

— Não precisa me dizer nada, querida. Eu imagino o que esteja sentindo. — ela fala, a voz sempre tão calma e sábia.

— Então me ajuda, tia, porque eu não faço ideia do que estou sentindo agora.

— Um dia sabíamos que a verdade viria a tona. Meu bem, nós duas sabemos tudo que aconteceu com Alexandre depois que fomos embora de Istambul. E quando ele pagou tudo que devia a justiça, não era para nos surpreender que um dia ele viesse atrás de você. Alexandre te amou muito, Giovanna, e jamais deixaria de tentar te explicar tudo que aconteceu.

— Se me amava tanto, por que deixou tudo isso acontecer? Por que não nos deu o direito de uma última conversa? Ao menos eu teria tido a chance de contar, mesmo que a decisão de me mandar embora se mantivesse, ao menos ele saberia de Emir, e meu filho não estaria tão confuso no quarto.

— Se for pensar em tudo que poderia ter sido, meu bem... O que tem é o que está na sua frente. Não pode mudar o passado, mas pode melhorar o futuro. Agora Emir sabe, e então? Quais os próximos passos?

Hatırladın mı?
Bıraktığın kabusları...

Você se lembra?
Os pesadelos que você deixou para trás

— Eu não sei... não consigo imaginar o que pode estar passando pela cabeça do Emir, ou o que Alexandre pensar sobre a paternidade e como funcionaria assim com essa distância, eu... eu não sei se quero Alexandre tão perto assim.

— O que teme sobre ele?

Eu paro, olho para meu chá fumegante, me perto no vapor que sobe.

— Tenho medo de nunca ter deixado de amá-lo, Canan. E isso seria ridículo. Depois de tudo, como eu ainda poderia amar esse homem?

— Quem explica o coração, meu bem? Quem poderia julgar a mulher que ama o homem com quem se casou?

— Mesmo que o casamento tenha sido uma compra?

— O amou de qualquer forma, Giovanna. E isso nunca vai mudar.

Nós duas somos interrompidas por sons de passos descendo as escadas. Eu reconheço aquele passo leve, e logo Emir aparece de pijama e com os olhos cansados. Eu me levanto do banco e me aproximo dele, o pegando em meus braços e apoiando sua cabeça em meu ombro. Olho para Canan e sorrio levemente, agradecendo pelo chá.

Quando deito Emir na cama, quando o cubro e beijo seu rosto com carinho, sua mãozinha toca meu braço.

Anneciğim... — ele usa o nosso idioma com sua voz tímida. — Como conheceu o Sr. Nero? Pode me contar essa história hoje?

Eu paro por um instante, e por mais que aquilo fosse me deixar sem dormir, eu não poderia esconder mais nada.

— Eu o conheci no dia da minha formatura na faculdade, querido. Ele me entregou o diploma...

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