A correnteza podia nos puxar para a direção que quisesse. Das coisas que minha mãe me ensinou e de que ainda me lembro, era da capacidade do oceano em lavar tudo, o que era bom e o que era ruim, levar para longe, mudar de lugar, transformar. O oceano trouxe o câncer de minha mãe quando a mesma se recusou a largar o cigarro. Trouxe as tosses, as dores, o tratamento, lavou o ruim. Levou o que era bom, a relação com meu pai, sua união comigo, nossa família estável. Eu não gostava de lembrar do passado, porque me levava de volta para o meio do oceano de possibilidades. Tudo que poderia ter sido e não foi. Quando entravámos em um mar agitado, um encontro de correntezas, nosso corpo se partia em dois para viver toda a dualidade dos momentos.
Não se preocupe, Giovanna, é só uma doença besta.
Sai do quarto, Giovanna, não quero que veja isso.
Hoje você vai dormir na casa de sua amiga, eu ficarei no hospital com sua mãe.
Não se preocupe, é só mais uma internação.
Quando tudo isso passar, vamos morar na Itália, no campo.
Giovanna, sua mãe não quer que a veja assim, entenda.
Nos últimos dias de sua vida, minha mãe não me quis ao seu lado. Não porque não me amasse, mas acredito que me amava demais a ponto de me entregar sua fragilidade, colocar em risco minha mente. Eu só escutava as notícias. Eu queria estar perto, mas ela me queria longe, a ponto de ter me deixado com tanta raiva, que no dia de sua morte, eu demorei para chorar. Fiquei com raiva, raiva por ter me tirado todos nossos últimos momentos.
Tudo que poderia ter sido, mas não foi.
Seu amor queria me proteger. E foi ele que me machucou no final.
Quando mandei Marcelo para casa, quando o dispensei dessa núvem turbulenta que começava a se aproximar, comecei a olhar pela janela a interação de Can e Alexandre. O homem parecia um menino ao lado do filho, os dois em uma sintonia que parecia de outras vidas, uma conexão nunca quebrada. Enquanto eu demorei para entender minha gestação e tudo o que significava, Alexandre descobriu Emir já pai. Emir já existia, não havia volta.
Alexandre foi como minha mãe. Seu amor me tirou tudo que poderia ter sido, a troco de me salvar de um perigo iminente. Me tirou a descoberta de ser uma família completa, me tirou o sono, alguns quilos, me tirou os primeiros meses, a noite sem dormir compartilhada.
E agora ele estava de volta, como um oceano, mudando trajetos, destruindo tudo que eu achava que era bom e ruim. Minha estabilidade com Emir em outro país, minha visão completamente negativa e enviesada pelo ódio que sentia dele.
Eu sabia que depois de sua passagem, nenhuma dessas coisas existiria.
Olho o calendário na geladeira, é claro que me tremo por completo, entendo minha melâncolia, minha nostalgia desmedida. É aniversário de morte de minha mãe, e eu raramente me lembrava dessa data. Só podia ser o efeito dele, só podia ser coisa dele. Eu sentia o calor da Úmbria invadir minha cozinha, me sentia tonta, suada, como se fosse um forno. Isso afetava meus sentidos. Caminhei devagar até a porta que dava para o jardim, os dois estavam abaixados perto dos arbustos, cutucando terra.
O vento abafado tenta resfriar minha pele, levo minha mão para o rosto para tentar evitar a claridade. A luz do sol bateu em algo metálico, refletiu em meus olhos, quase me cegou, mas a visão dos dois homens que abalavam todas as minhas estruturas não me deixava desviar.
Um cheiro de gardênia, invadiu meus sentidos. Eu não tinha gardênia no jardim, mas eram as flores favoritas de minha mãe.
O oceano mudou a correnteza, veio contra mim. Foi a gargalhada de Emir que me trouxe para a realidade, assim como o vibrar do meu celular no bolso. Eu pego o aparelho, velho uma mensagem do diretor do Ataturk.