XXXV

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Eu caminhava com Omar até a entrada do prédio tentando acalmar as batidas do meu coração. Escutava o que ele dizia, algo sobre a expansão do Ataturk, um pequeno edifico anexo para abrigar a parte administrativa e itens de acervo mais antigos. Os óculos escuros disfarçavam o pânico que eu tinha. Sentia que a qualquer momento Giovanna sairia de algum espaço, de alguma sala, alguma coluna.

Ataturk era sinônimo de Giovanna para mim, assim como arroz com mexilhões do Bósforo. Eu não pisava naquele ponto há seis anos. Era demais.

— Entendeu? — Omar perguntou curioso, vendo que eu parecia distraído.

— Entendi. Prédio. Ataturk.

— Esse lugar te trás muitas lembranças, não é?

— Vamos seguir caminho, Omar.

Quando eu entro no centro cultural, somos recebidos por um diretor que não conheço. Os funcionários são pessoas que não conheço, e as paredes tem artes que não chamam minha atenção. Fiquei sabendo da aposentadoria de Kemal através de Omar, um pouco a contragosto.

O homem que já me chamou de filho e me acolheu em sua família, me detestava pelo o que fiz com sua filha. E com razão. Pedi para que Omar parasse de se preocupar com eles. A vida de todos seria melhor sem nossas interferências.

— A verdade é que nossa ideia é trazer mais coisas de fora, inclusive ontem eu tive uma reunião muito boa com uma artista turca.

— É mesmo? — Omar pareceu interessado.

— É uma jovem. Se chama Giovanna Antonelli.

Eu paro no lugar. Entro em curto. Minha mente fica branca e só de mencionar o nome dela eu posso sentir o cheiro de seu perfume. Minhas pernas tremem, minha mãos começam a suar. Há algo quase místico naquele momento, quase como se eu pudesse sentir sua alma do meu lado, me cercando, tentando me capturar.

— É muito bom ver nosso país com tanto talento. — Omar fala no meu lugar, preocupado com a minha reação.

— Ela está em Istambul? — sai da minha boca sem que eu pudesse controlar.

— Não, não, Senhor. Voltou para Itália, foi uma viagem curta. Acho que tem família.

— É casada?

— Nero... — Omar me alerta.

— Não sei dizer, mas não me surpreenderia. A mulher é divina. — o diretor fala e volta ao trabalho logo, tão alheio ao olhar raivoso que lhe lanço.

Deixo Omar seguir a conversa e caminho para longe. Eu não sei quanto tempo eu fico parado no mesmo lugar, perdido em meus pensamentos, até que Omar me aborda novamente.

— Você está bem? — ele pergunta, mas já sabe a resposta.

— Ela estava aqui, Omar. Aqui em Istambul. Aqui nesse lugar. Ontem, por uma questão de horas o destino não nos coloca cara a cara.

— E como se sente?

— Eu? — solto uma risada nervosa. — Nervoso para caralho, como se quase tivesse sido pego fazendo merda.

— Não mexeu nem um pouco com você? Não te deu uma leve vontade que fosse? De ver como ela está?

Eu olho para Omar como se ele tivesse vinte cabeças.

— O que você acha? É como dar álcool a um alcoólatra. Eu sempre vou ter vontade de ver como está Giovanna.

— Ótimo, porque eu peguei isso.

Omar me estende um folheto. Galeria de Uffizi. Eu pego e abro, fala muito sobre o acervo e as exposições do momento. Na última página, uma foto dela. Diretora da galeria. Linda, imponente. O rosto um pouco mais maduro, os cabelos mais longos, com cor mais acobreada. O olhar um pouco mais duro. Os braços cruzados, a mão da aliança se esconde, e a minha grande dúvida não pode ser respondida.

Olho para Omar e sinto meus olhos arderem.

— Ela está linda, Omar. Vê? Linda... diretora de uma galeria importante, eu sabia que ela chegaria lá. Meu Deus...

Pego o masbaha em meu bolso, beijo as contas, agradeço.

— Ela está feliz. Dá para ver. — eu falo.

— Ela está, meu amigo. Parece que está.

— No final tudo valeu a pena, então. Eu poderia ficar infeliz pelo resto da vida só para ver ela feliz. — aperto meus olhos, devolvo o folheto a ele. — Será que ela é artista? Será que pinta os próprios quadros?

— Não sei, na mesa do cara lá dentro eu tirei foto disso aqui. — Omar me mostra a tela do celular. — Vê? Parece que é uma exposição autoral, em uma galeria menor...

Eram informações sobre uma exposição inédita.

— Can no mundo dos sonhos, parece algo bem especial para ela.

— "Uma homenagem ao homem sonhador que faz meus dias mais alegres". — eu respiro fundo. — Quem diabos é Can?

— Eu não sei, nunca ficamos sabendo se ela se casou, você nunca quis procurar sobre ela. Isso vai mudar agora?



Eu olho meu vestido, viro de um lado para o outro, me vendo no espelho. Algo está estranho dentro de mim, na verdade desde que voltei de Istambul eu sinto como se algo no universo tivesse saído do universo. Na sala, Kemal termina de arrumar Emir enquanto Canan apressa os dois. Eu não deveria estar tão nervosa, mas estou, e acho que era normal de qualquer estreia. 

Eram meus quadros, minha arte exposta. 

E é por isso que estou nervosa. 

É com isso que tento me convencer. 

— Uau, mamãe! Você está linda! 

Emir parece um príncipe, a camisa branca, a calça azul escura e o sapatinho marrom combinando com o cinto. Recebo o olhar admirado de meus tios e sorrio para eles, abraçando cada um deles. 

— Demorou, mas veio! A exposição própria! Isso é um grande passo. — Canan falou enquanto caminhávamos para fora do pequeno apartamento. 

No carro, Kemal falava sem parar sobre a limpeza da piscina de Umbria e como dessa vez tinha ficado melhor do que todas as outras. E todas as vezes era o mesmo discurso. Quando eu paro o carro na frente da casa iluminada, o manobrista me cumprimenta com um sorriso e me parabeniza. Eu entro no salão de mãos dadas com meu filho, Emir sorri como a criança mais educada de todas, mas eu sei que não vai demorar muito para Ali e Deniz atiçarem a sapecagem do menino. 

Por um tempo, porém, eu ando com Emir por todo espaço, mostrando todos os quadros, até aqueles que tem uma mãozinha dele também. Era nosso passatempo favorito. Gostávamos de fazer piquenique nos campos da Umbria, levar um quadro em branco e muitas tintas. Eu gostava de pensar que as cores eram formas de Emir se expressar. 

Foi assim para aliviar as birras dos dois anos, os dias mais doentes, e até mesmo o dia em que ele me perguntou sobre o pai e a dura mentira que eu tive que inventar. 

Ainda assim que me considerava uma vitoriosa por ter o sorriso mais sincero do meu lado, e pelo resto da minha vida eu lutaria para manter as coisas exatamente assim. 

Converso com algumas pessoas, recebo os parabéns e também críticas disfarçadas de elogios. Depois de um tempo, eu paro na frente do meu quadro favorito. Tons escuros de azul, traços brancos no infinito. Emir dizia que era o espaço. Era o lugar onde o pai dele estava. Eu gostava de pensar que em algum lugar do universo, eu e Alexandre demos certo na vida. Criávamos Emir juntos, com férias na Umbria e verões em Bodrum. 

Sem fortunas, sem máfia, sem tiroteio. 

Uma vida normal minha e dele. 

E então tudo acontece muito rápido. 

Eu escuto uma taça de champanhe se quebrar, escuto o grito de susto de Emir e então a voz de Alexandre nebula tudo. 

— Eu tinha que ver com meus próprios olhos o sucesso da sua exposição, Giovanna. 


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