XXXVIII

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Eu olho para ele e para a mão enfaixada. Seus olhos brilham como o sol em minha cabeça, ele estava suado, um pouco sujo como qualquer criança em fase escolar. Eu era como ele, odiava perder dia de escola, meu medo era acontecer algo muito grandioso e eu não estar lá para ver. Olho para onde as professoras estão, vejo como elas deixam as crianças mais livres dentro do campo de visão.

Olho para ele novamente, pego o maço quase vazio em meu bolso, apago o cigarro na tampa e jogo a bituca dentro dela.

— Pronto.

— É melhor assim, senhor. — ele fala sorrindo.

— Você não devia estar em casa? Essa mão aí... não devia estar de repouso?

— E perder esse dia? Eu moro em Florença! No final do dia é tudo que eu vou ter!

— Você é sua mãe inteiro.

Ele fez cara de surpresa, animado.

— Conhece minha mãe? Conhece mesmo?

— Eu... bom, já a vi algumas vezes, e eu estava na exposição ontem, vi como você machucou a mão. Achei que estaria em casa.

— Convenci minha avó a me deixar ir para escola.

— Sua mãe sabe disso?

Ele balançou os ombros.

— Vai saber quando eu chegar em casa.

Eu balanço a cabeça em negação. Ele era toda as atitudes da mãe dele, esperto. Me ajoelho na frente dele e me atento a todos os detalhes. Ele tem os olhos da mãe, mas o resto é quase uma mistura.

— Certo, veja... não pode esconder as coisas da sua mãe desse jeito, entendeu? Se acontecer alguma coisa com você nesse passeio da escola, ela vai ficar assustada em saber que foi para a escolha escondido.

— Eu sei, vou pedir desculpas quando chegar em casa. Se ela descobrir. — ele sorri com certo charme, mas eu sei que ele entendeu.

— Você é bem esperto.

Eu olho para ele e para as outras crianças e tenho uma ideia. Me aproximo da professora deles com Emir colado em mim. Me apresento com direito a cartão da minha empresa e digo que conheço o garoto, pergunto se posso fazer um agrado para as crianças.

A palavra sorvete parecia um código para gritaria e animação.

Emir me esquece rapidamente, se junta com seus amigos enquanto eu acompanho a professora e a auxiliar até uma sorveteria próxima. Deixo alguns bons euros no caixa e digo para ficarem a vontade para escolher o que quisessem. As professoras agradecem meu gesto, orientado e colocando ordem nas crianças.

Eu pego meu sorvete e sento em um banquinho para observa-los. Meus olhos, porém, não saem de Emir. O jeito como ele queria ser o último a pegar, deixava as meninas passarem na frente dele, esperava com calma apesar da animação nítida.

Meu foco no sorvete de maracujá começa a tomar conta. A massa era boa, o gosto não era forte. Esse povo sabia fazer bons gelatos.

— Muito obrigada pelo sorvete, senhor... — a voz de Emir na minha frente chama atenção.

— Nero. Pode me chamar de Nero.

Emir senta do meu lado, imitando meu jeito de tomar sorvete. Eu acho graça.

— E o seu? — eu pergunto.

— Emir Can Antonelli.

— Can no mundo dos sonhos... — eu entendi finalmente. — A exposição era para você.

— Sim! Eu ajudei minha mãe com alguns quadros.

— Você gosta de pintar? Quer ser artista como ela?

— Eu amo pintura, mas eu quero mesmo é desenhar prédios bem bonitos, sabe? Grandes e cheios de curva, e...

Emir me olha e ri.

— Entendeu, não é?

— Entendi, você quer ser um arquiteto, e deixar o engenheiro com dor de cabeça.

— O senhor é engenheiro?

— Sou sim.

— Então você pode construir os prédios que eu desenhar.

— Se eu estiver vivo até lá, construo sim.

Emir me olha por um instante, as pernas balançando no banco.

— Você tem filhos, Sr. Nero?

— Não, não tenho.

— É uma pena, seu filho ia adorar tomar sorvete antes do almoço.

— Bom, você estar feliz com isso já basta para mim. Só não fale para sua mãe, por favor.

— Palavra de escoteiro.

— É escoteiro também?

— Não. — ele negou e começou a rir, tirando uma risada minha também.

— E... você mora só com a sua mãe?

— Eu e minha mãe durante a semana ficamos aqui em Florença. No fim de semana vamos para Umbria.

— Umbria...

— Conhece?

— Conheço sim, é muito bonito.

— É demais, e a piscina é enorme.

Que bom que ele gosta, eu penso.

— Quando meu pai voltar da lua, com certeza ele vai me ensinar a nadar no fundo.

Aquele comentário torce meu coração.

— Seu pai está na lua?

— Sim, ele constrói casas lá. É um engenheiro igual você.

Quando ele fala, o jeito como fala, mexe com algo dentro de mim. Meus olhos fixam em um ponto vazio do chão. Giovanna não tinha dito sobre o falecimento do pai. Giovanna disse que ele estava na lua e que era um engenheiro. Giovanna...

Giovanna disse que ele morreu.

— Quantos anos tem, Emir?

— Eu... eu tenho...

— Emir Can! — a voz de Canan assusta a nós dois.

Eu sinto o coração dela parar. Digo isso porque o meu também falha umas batidas, principalmente quando eu sei que Giovanna não me quer perto da família dela. O horror em seu olhar, porém, me deixa ainda mais perturbado, e a idade de Emir nunca respondida me deixa com uma angústia gigantesca. Ela se aproxima da gente e puxa Emir delicadamente pelo braço.

— Emir, minha nossa, vá até sua professora agora mesmo, não se pode conversar com estranhos.

— Não é um estranho, vovó, é meu amigo. Senhor Nero.

— Emir... — ela passa a mão na testa em agonia. — Vai logo, vai, dê adeus ao seu amigo.

— Foi um prazer, Senhor Nero.

— O prazer foi meu, Emir Can.

Quando o menino se afasta, eu encaro Canan sem entender.

— Não sou um estranho, Canan.

— Para nós é como se fosse.

Meu sorvete já derreteu, e minha raiva subiu.

— Eu entendo que tem raiva pelo o que fiz, mas tenho meus motivos.

— Giovanna me contou o seu envolvimento com o crime, para mim já basta.

— Não sou um criminoso, Canan. Já paguei minhas dívidas com a justiça também. E tudo que eu fiz foi proteger a Giovanna, lhe dar uma chance de ser feliz. Eu duvido que Kemal não teria feito o mesmo que eu.

Aquilo pareceu pegar Canan desprevenida, e eu vi em uma brecha a chance de ter a resposta da minha pergunta.

— Canan, quantos anos o Emir tem? Quando foi que esse menino nasceu?

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