Metrô. Chuva. Atrasos. Ônibus. Engarrafamento.
É, definitivamente, eu havia chegado a uma metrópole brasileira.
Após duas horas e meia de diversos atrasos no transporte público, subi em um ônibus na Estação Recife, no centro da cidade. O veículo prosseguiu por algumas ruas, até chegar numa das vias principais da região central, a Avenida Conde da Boa Vista.
De súbito, não me importavam mais a chuva, nem o rangido do motor do ônibus, nem a lotação acima do permitido. O meu sonho de sempre estava se revelando aos meus olhos: a capital.
Algumas dezenas de minutos depois, quase no final da avenida, desci. Dobrei para uma rua paralela à Conde, deparando-me com quarteirões residenciais bem arborizados.
Passei por alguns prédios de, no máximo, vinte andares, padarias, lanchonetes, até chegar ao número que correspondia ao edifício da minha amiga Leona. O abrigo tranquilo para a jornada que eu estava disposta a encarar.
***
Tive só o tempo de abraçá-la e dizer apenas uma boa tarde. Num único fôlego, minha amiga contou-me tudo o que ocorreu em sua vida desde que ela havia mudado para a capital. Tinha esquecido do seu jeito tempestuoso. Uma loira platinada de cabelos longos e gestos amplos e teatrais.
Quando terminou, já eram oito horas da noite, e eu estava terminando de desfazer minhas malas no meu novo quarto, com Leona deitada em minha cama.
Ela dizia ter sentido saudades, queria que tivéssemos feito faculdade juntas, e que eu vou adorar Recife, vou namorar muito, divertir-me demais, e que vamos aproveitar as últimas semanas dela por lá.
Falava tanto e tão rápido. Sequer parecia tomar fôlego entre uma frase e outra. Tive medo de que faltasse oxigenação para seu cérebro e ela desmaiasse.
– E você?
– Oi?
Quase um susto. Ela havia solicitado que eu dissesse algo.
– Como você está, amiga?
Foi a minha vez de falar. Aos poucos, os anos a nos separar se encurtaram. Eu estava novamente lá, no casarão da minha amiga rica em Garanhuns, comentando sobre nossas últimas novidades.
Quando dei por mim, havia deixado as malas de lado e estávamos as duas deitadas na cama, conversando.
– Tome cuidado, amiga! – advertia Leona – Ainda bem que era só uma menina, imagina se fosse um marginal mais agressivo.
Abaixei o olhar, concordando com a cabeça. Percebendo o meu incômodo em falar sobre o assalto, a loira procurou mudar de assunto, questionando-me:
– E esse carinha da lanchonete? Era interessante? Você podia ter ficado com ele.
– Um balconista? O que ele tinha pra me oferecer? Um pastel dormido?
Leona jogou seus cabelos platinados e lisos para trás, num gesto teatral que só ela poderia fazer. Sentando-se na cama, fitou meus olhos e indagou:
– Em que época você vive?
Ainda deitada, franzi o cenho e questionei:
– Por que a pergunta? – Já sabia o que estava por vir.
– Sexo não significa mais casamento. Aquele cara seria só diversão.
Balancei a cabeça, sorrindo com a inconsequência dela. Retruquei:
– Ele ofereceu aqueles bilhetes de metrô só pra trepar comigo.
– E qual o problema?
Sentei-me. Algo incrédula, protestei:
– Eu não estou na época das cavernas. Não vou ficar com um homem só porque ele vai me dar uma caça em troca. Não quero que ele saia contando vantagem por aí.
– Você está perdendo seu tempo, Pilar. Se ele contasse vantagem, você só precisava dizer a verdade.
– Qual verdade?
Arqueando a sobrancelha esquerda, Leona lançou-me aquele seu indefectível olhar sarcástico. Com uma voz manhosa que só ela conseguia fazer, respondeu-me:
– Que ele não deveria se vangloriar tanto. Afinal, ele só passou de um divertimento. Aquele sorriso, aquele corpo não passava de um porta-pênis. Sabe como é, balconista gostoso... meu gatinho de estimação morreu num incêndio, fiquei chateada... estou precisando de um consolo pra me distrair. Você serviu.
Nova gargalhada. De fato, estava com saudades daquelas conversas.
Leona voltou a se deitar ao meu lado. Menos artificial do que de costume, ela falou:
– Não entendo essa tua insistência de manter a tua virgindade.
Um curto silêncio. Pensava em resposta correta. A verdadeira era melhor.
– Falo a verdade quando digo; não perderia a minha virgindade com um balconista de lanchonete. Não guardei tanto algo para entregar ao primeiro porta-pênis que encontrar pelo caminho.
Leona sorriu. Virou-se de lado. Mesmo compreendendo-me bem, ela ainda tentou argumentar:
– Quando experimentar, vai se arrepender de ter demorado tanto.
– Ou, talvez, eu fique satisfeita por ter aguardado pelo momento certo.
Outra vez, minha amiga deu de ombros. Num salto, aquela garota alta e magra levantou-se. Já à porta, avisou-me:
– Por favor, tome cuidado – falou, num tom sério e calmo, algo incomum para aquela tempestade de cabelos claros. – Aqui não é mais o nosso interior, as pessoas não são tão boas como lá na nossa terra.
Dei um sorriso leve. Ela sorriu de volta e se retirou.
Vendo-me sozinha, fechei a porta do quarto. Depois, andei até a janela. Lá fora, a chuva tinha cessado, portanto poderia abrir o vidro. Pude ouvir os carros, ver a profusão de prédios e luzes artificiais.
Tantos mundos particulares no meio daquele universo urbano. Tantas pessoas, tantos medos, tantos perigos. E lá estava eu, ansiosa para me jogar naquele mar de possibilidades e nadar com os tubarões. No entanto, não iria teme-los.
Iria caçá-los.
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Cobiça
Mystery / ThrillerUma vilã como protagonista. Jovem, bonita e de origem humilde, Pilar é a típica garota do interior que almeja tentar a vida na capital. Debaixo dessa máscara de moça sonhadora, porém, esconde-se uma psicopata totalmente desprovida de moral ou culpa...