Ao longe, um murmúrio baixo e constante. A brisa soprava leve. O vento não assobiava, quase cantarolava. Gotas de chuva batiam suavemente na janela. Música curiosa, porém absolutamente confortável aos meus ouvidos. O cântico da natureza para restaurar minhas forças.
Abri as pálpebras. Vi formas e cores não reconhecidas. Meus olhos iam de um lado a outro, tentando, para tranquilizar-me, descobrir onde eu estava. De nada adiantou. Encolhi-me mais ainda.
Neste instante, compreendi que havia uma manta grossa me cobrindo. Ergui um pouco a cabeça. Meu corpo inteiro doeu. Voltei a ficar quieta. Percebi que estava deitada num sofá. Também, pude notar roupas largas e velhas a cobrir minha pele.
Olhei para o lado. A chama de uma vela tremulava no meio da madrugada. Observei-a por algum tempo, enquanto as memórias daquela noite retornavam. Quando já estava absolutamente desperta, vi que já se aproximava um dos meus salvadores.
Uma senhora baixa, aparentando ter mais idade do que realmente tinha, agachou-se à minha frente. Era a mulher do caseiro. Ao ver-me desperta, ela sorriu e falou:
– Você já está mais corada – Passou a mão em minha testa. – Você teve sorte de não pegar pneumonia. Nem com febre está.
Ainda a encarei. Tentei esboçar um sorriso, porém continuava cansada. Com a voz rouca de absoluto enfado, eu falei:
– Vim do interior, igual a vocês. Também não tive muita coisa nessa vida. Apenas minha casa e meu estudo. Pessoas como nós só podem contar com a esperança e a sorte.
Ela sorriu, anuindo com a cabeça. Seu nome era Efigênia.
– Amanhã – dizia a mulher –, meu marido e eu vamos te dar uma carona até o Recife.
– Minha mala... – sussurrei – ficou lá na casa grande, quando aquele desgraçado me expulsou.
– Quando ele for embora, eu vou lá e pego – ela riu para tranquilizar-me.
Sorri de volta. Mesmo fraca, esforçava-me para compreender como desconhecidos poderiam se empenhar tanto em me ajudar. Talvez, uma forma de vingança contra Henrique. Sorte a minha ter me tornado amiga dos inimigos dele. Ou, talvez, fosse somente boa-fé.
– Ele me expulsou no meio da chuva... – sussurrei – e eu pensava que ele queria namorar comigo – a chama da vela fazia as lágrimas retidas em meus olhos brilharem. – Não consegui. Eu falhei. Ele só queria ir para a cama comigo, e me largar. Eu sou tão besta.
Mais uma vez, Efigênia passou a mão áspera em meu rosto. Ainda querendo acalmar-me, a senhora disse:
– Você é uma mulher direita. Deus há de te abençoar com um homem que te dê tudo o que você merece. Reze e durma. Amanhã, você recomeça.
Dei boa-noite àquela senhora. Antes de dormir, agradeci internamente por minha sina. Para o mal ou para o bem, aquele era o caminho ao qual me propus.
Sim, eu cai. Aquela hora, portanto, era o momento de me recolher e reunir forças antes de partir para a próxima rodada.
***
Segunda-feira. Como o previsto, Henrique foi embora ainda no domingo à tarde, e Efigênia pôde ir pegar a minha mala. Embarcamos para Recife, a mulher, o caseiro e eu. Todos juntos numa picape velha.
Trouxeram-me até a Avenida Agamenon Magalhães, uma das vias centrais da cidade, que ficava a vinte minutos a pé do apartamento de Leona.
O sol forte brilhava nos céus. Praticamente arrastando a minha mala comigo, atravessei as primeiras quatro faixas da larga avenida.
Por ser dividida por um canal central, havia algumas pontes para interligar as duas vias. Atravessei a mais próxima do meu caminho.
Enquanto esperava o sinal abrir, com o intuito de atravessar as últimas quatro faixas, olhei para o alto. Estava debaixo de uma árvore, na esquina de um dos cruzamentos. O vento do litoral agitou a copa. As folhas cantarolavam sobre mim, enquanto suas sombras brincavam em meu rosto.
Voltei ao Recife. Estava descansada e iria recomeçar. Quantas vezes fossem necessárias.
Após pouco mais de vinte minutos de caminhada, cheguei ao apartamento. Por coincidência, Leona também havia acabado de chegar. Fui até seu quarto, encontrando-a ainda desfazendo sua mala.
– Como foi lá com o loiro? – questionou ela.
– Foi muito legal – falei sorrindo com a melhor sinceridade improvisada. – Tomamos banho de piscina, andamos à cavalo, assistimos filmes.
– E...? – questionou ela, com sorrisinho sacana.
– Bem, não rolou nada. Quero dizer, ia rolar, mas daí falei que sou virgem e ele achou melhor não ir tão rápido. Disse que menina virgem dá mais trabalho.
Sempre teatral, Leona pôs a mão sobe o peito, e riu, com ar genuíno de incrédula:
– Meu Deus! Não sei nem se isso foi um elogio, mas... – ficou um pouco com os lábios abertos, como se tentasse arrumar palavras para exprimir corretamente o que pensava. Sem muito sucesso, resolveu falar com as que havia conseguido – será que você vai conseguir pegar aquele cara mesmo? Digo, não se ofenda, só que ele não passa nem uma hora com a mesma menina na balada. E foi paciente com você?!
– Totalmente – disse eu, sentando-se ao seu lado e com ar tímido de moça apaixonada.
– Por favor, tome cuidado – orientou mais uma vez minha amiga, tocando a minha mão. – Ele pode estar só adotando uma estratégia mais calma pra tentar transar com você.
– Pode até ser, mas só vou saber se sair com ele de novo.
Com olhos apertados e ar ainda divertido, Leona questionou:
– E a gata borralheira pretende se encontrar com ele mais uma vez?
Um sorriso leve e apaixonado brotava em minha face, enquanto os portões do inferno abriam e cuspiam suas chamas para formar o brilho nos meus olhos. Suave como a calmaria antes da grande tempestade, eu respondi ao questionamento da minha amiga:
– Com absoluta certeza, eu vou sair com ele muito em breve.
***
Mais tarde.
Noite de segunda era assim. A cidade dormia cedo. O relógio marcava quinze minutos para a meia-noite. Nesse momento, encontrava-me sozinha na varanda, bebendo meu café com leite e canela enquanto observava aquele céu de poucas estrelas. Repensava minhas quedas. Relembrava o meu pai.
Caí muito no meio da escalada. Por mais alto que eu subisse, sempre me quedava e voltava ao início. Não me importava, porém, o quão demorado poderia ser. Estava disposta a tentar até o meu último sopro de vida.
Afinal, não houve nenhum fato suficiente para me fazer desistir. Eu não estava inválida, nem demente, ou sequer morta. De qualquer forma, provei a mim mesma que consigo superar qualquer adversidade, fortalecendo-me a cada jogada malsucedida.
Esta necessidade sempre me dominou. Tomava meus atos. Fazia-me contar apenas com meus talentos e minha sorte para obedecer a tão irresistível impulso.
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Muito obrigado aos leitores que me acompanharam até aqui. Se estão gostando, por favor, lembrem-se de votar e comentar os capítulos. Esse pequeno gesto traz muita alegria para nós, escritores do Wattpad.
E, se preparem, pois na próxima parte prometo que a história vai pegar fogo. Vocês nem imaginam metade do que nossa Pilar está prestes a fazer.
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Cobiça
Mystery / ThrillerUma vilã como protagonista. Jovem, bonita e de origem humilde, Pilar é a típica garota do interior que almeja tentar a vida na capital. Debaixo dessa máscara de moça sonhadora, porém, esconde-se uma psicopata totalmente desprovida de moral ou culpa...