Capítulo 21

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O jantar transcorria sem mais atritos explícitos. Com muita observação, no entanto, pude perceber uma fina camada de dissimulação no ar, como se aquela família estivesse se esforçando para manter as aparências na minha frente.

Havia nas entrelinhas, entretanto, pequenas mágoas e discordância nos diálogos entre eles. Aproveitava que estavam ocupados demais com esse tipo de fingimento para falar mais sobre mim.

Tentava reparar o que Henrique havia feito comigo ao me apresentar a sua mãe. Passei a semana tão empolgada com a possibilidade de fazer parte da família Alencar que nem me preparei devidamente para o evento. Deveria ter instruído meu namorado de chantagem como eu queria ser apresentada aos seus familiares.

De qualquer forma, o rapaz nem havia me dado abertura para tanto, esquivando-se das minhas tentativas de comunicação e falando apenas o estritamente necessário.

Contei da minha infância em Garanhuns e como sempre tive que batalhar para aproveitar as oportunidades da vida. Também falei sobre a depressão da minha mãe, e o fato de eu ter abdicado da chance de ingressar em um curso universitário.

Enfatizei o detalhe do transtorno psiquiátrico da minha genitora, pois história de doença na família sempre costuma ser bastante comovente, angariando a simpatia das pessoas.

Aquela, no entanto, era uma atitude até certo ponto arriscada. Ao mesmo tempo em que poderia comover, também poderia assustar, pois algum deles poderia pensar que eu havia herdado geneticamente a doença de minha mãe. Caso fosse bem-sucedida em convencer os meus sogros da moça batalhadora que eu sou, porém, a aposta teria valido a pena.

Henrique e Cecília continuavam fazendo questão de não me encarar enquanto contava a minha trajetória. Hilda ocasionalmente parava de olhar para o seu prato e voltava a me fitar com aquela expressão suave. Já Fernão parecia ser o único realmente interessado no que eu falava, e até mesmo tecia um ou outro comentário.

Quando percebeu que eu havia terminado de contar minha vida, Hilda comentou, com um sorriso leve na face:

– Impressionante sua história, meu amor. Só faltou dizer que já dormiu na porta da igreja debaixo de chuva.

Maria Cecília voltou a dar uma risadinha baixa. Até mesmo Henrique, antes tão sério, acabou por deixar escapar um riso. Fernão procurou rapidamente contornar aquela situação, questionando:

– Isso tudo parece ter amadurecido você muito cedo. Sua mãe devia ser muito orgulhosa da filha que tem. Você parece ser uma menina muito especial.

Foi muito sutil, contudo consegui perceber uma ligeira mudança na expressão sempre plácida de Hilda. Como se procurasse esconder a emoção denunciada em seu rosto, a senhora da casa abaixou mais cabeça.

Parecendo estar desatento à reação da esposa, o governador emendou, dirigindo-se diretamente a Henrique:

– E você nem falou muito dessa moça tão boa, meu filho. Cuida bem dessa daí, que ela parece ser bem direita.

O rapaz voltou-se para o pai, sem muita expressividade no rosto. Nesse instante, tanto Hilda como Cecília encararam o loiro. Durante um curto momento, tive medo que aquele garoto colocasse tudo a perder sem se importar com as consequências.

Para minha sorte e surpresa, Hilda interveio naquele ligeiro momento de tensão, e ordenou a uma das empregadas que trouxesse a sobremesa. Era um creme de nata com geleia de goiaba por cima. Um doce para compensar aquela noite tão estranha.

Até aquele momento, parecia que não tive sucesso em entrar com os dois pés na família Alencar. Na mesma proporção, porém, ainda não tive nenhuma derrota.

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