Capítulo 47

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As mãos delicadas com dedos suaves, com unhas pintadas de um negro profundo, tocaram o vidro de perfume. Erguiam o recipiente à altura do meu pescoço. O dedo indicador apertava a válvula spray, e o jato daquele líquido de aroma discreto, que transitava entre o acre e o amadeirado, formou uma nuvem no ar. Essa dispersão espalhou-se pelo banheiro. As pequenas gotículas flutuavam, iluminadas pela única luz acesa, a do espelho. Fechei os meus olhos, deixando aquela névoa tomar-me por completo.

O perfume deitou-se em meu corpo, caindo pelo resto do piso do toalete da minha suíte no apartamento de Fernão. Abri os olhos, vendo-me com um vestido totalmente preto. A parte do torso era rígida, deixando meus ombros e boa parte das costas de fora. Da cintura para baixo, porém, era mais solto e levemente armado, descendo até a altura dos joelhos.

Em meus pés, saltos scarpin negros tornavam-me cinco centímetros mais alta. Meus cabelos, presos num coque alto, deixando meu pescoço alvo à mostra e guarnecido apenas com um colar fino de prata.

Dei um passo para trás, olhando-me melhor no grande espelho daquele banheiro. Aquela seria a primeira vez que eu iria vestir-me preto, a minha cor favorita, na presença da família Alencar.

Como a luz daquela pia era a única acesa naquele cômodo, a luminosidade e a escuridão faziam um jogo interessante em meu corpo. Em algumas partes, era possível me ver, em outras, não. Durante toda a minha jornada, em toda a minha vida, aquele era o modo como eu cheguei tão longe.

Dessa vez, contudo, não precisaria mais me esconder ou conter-me. Era a hora de me revelar.

Nas três semanas que se seguiram, Fernão deu-me trégua na sua tentativa de desvirginar-me. Talvez, a presença de minha priminha tivesse distraído aquele homem. Aliás, ele não apenas havia me deixado em paz, de fato estava até bem afastado. Nos últimos dias, portanto, não havíamos nos visto tanto, sequer nos falado direto ao telefone.

Sua desculpa era o fato de que ele estava muito ocupado, cuidando da festa de aniversário de sua esposa, o baile beneficente. Dessa forma, dispensei os serviços da garota, pois ela já havia cumprido por demais o seu papel. Resolvi, então, aproveitar meus últimos dias sozinha naquele apartamento.

Às minhas costas, vi emergir das sombras um homem alto, de pele bronzeada, cabelo loiro-cobre e de olhos amarelos. Quem o visse trajado daquela maneira, com terno e gravata pretos feitos sob medida numa alfaiataria, mal poderia pensar que se tratava de um playboy inconsequente e irresponsável, pois ele passava por um cavalheiro britânico.

Henrique ficou por trás de mim, sendo igualmente pouco iluminado pela luz do espelho. Posicionou a sua face ao lado da minha, encarando-me através de meu reflexo.

Ficamos nos olhando por alguns segundos, talvez ainda incrédulos com as circunstâncias que proporcionaram aquela união.

– Você fica linda vestida de preto – disse-me o rapaz.

Sincera, sem muita emoção na voz, falei:

– Sim, eu sei.

Segurando meus ombros desnudos, Henrique delicadamente me fez virar em sua direção. Desceu a sua mão em minha cintura. Por um segundo, pensei que aquele rapaz fosse tentar me beijar. Felizmente, esse fato não aconteceu, pois de certo ele não estava pronto para demonstrar algum carinho depois de tudo o que passamos. De fato, aquilo que mais havia nos unido, naquelas últimas semanas, fora o desejo mútuo de enfim subjugar Fernão.

Ainda a encarar-me de modo contínuo, Henrique falou:

– Finalmente, é hoje.

Suave, repousei minha mão sobre a face do meu novo comparsa. Felizmente, não havia mais naquele rosto nenhuma marca das agressões do governador.

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