Capítulo 33

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Nas horas que haviam se passado, experimentei uma noite de princesa. Coloquei um lindo vestido, recebi a visita de um príncipe e este me levou em sua carruagem para um jantar em seu palácio.

Desde cedo, porém, aprendi com a vida de que não posso construir minhas expectativas em cima de clássicos infantis. A realidade, portanto, estava me seguindo e me vigiando na esquina de minha casa, querendo subir para falar comigo.

Liguei para a portaria, autorizando a subida de Henrique.

– Esse idiota é namorado de minha prima Íris – comentei com o porteiro. – Ele acha que ela tá aqui. Manda ele subir pra eu falar com esse mané.

Dessa forma, caso ele tivesse comentado sobre alguma Íris ao porteiro, o empregado do condomínio não avisaria ao rapaz que não mora nenhuma mulher com esse nome no prédio. Afinal, eu mesma poderia ter recebido a minha suposta prima em casa, e o seu namorado bêbado veio atrás dela.

Quando a campainha tocou, eu continuava metida no lindo vestido dado por Fernão. Pensei em correr para o meu guarda-roupa e trocar-me, porém não havia tempo. Meu querido namorado tocava incessantemente à porta.

Até ensaiei uns passos para o meu quarto, contudo o rapaz começou a bater fortemente na madeira da entrada e a gritar o meu nome. Se eu demorasse a atender, provavelmente ele acordaria o prédio inteiro com todo aquele escândalo.

Abri e ele jogou todo o seu corpo para dentro da sala. Fechei a porta do apartamento, porém não de chave. Não sabia o estado mental daquele garoto. Logo, deveria estar preparada para fugir ao menor sinal de perigo. Voltei-me para ele, e o que vi realmente me impressionou.

Seus olhos estavam fundos e vermelhos. Sua face, pálida. Poderia até ser impressão minha, contudo o percebia até ligeiramente mais magro. Sua expressão, inclusive era a quem não havia dormido quase nada nos últimos dias.

Devagar, aproximei-me dele. Estudava-o com cautela, esperando alguma reação explosiva. Ao contrário do que costumava fazer, ele ergueu a sua face para mim, e questionou-me numa voz enfraquecida:

– O que você realmente quer? – Franzi o cenho por conta de sua pergunta e do hálito forte de álcool que sua boca exalava. – O que você quer realmente comigo, Íris?

– Eu já disse, quero só fazer parte de sua família.

Ele deu um risinho que ficava entre o desânimo e o ceticismo, continuando:

– Esse vestido aí, foi ele quem deu?

– Minha amiga Leona deixou comigo.

O rapaz balançou a cabeça em tom negativo.

– Claro que não foi. Eu vi a sacola na mão do meu pai, hoje mais cedo. Ele entregou pro motorista. Quando vi a marca de grife feminina na sacola, sabia que era pra você. – Apertou os olhos, voltando a sorrir de modo estranho. – O velho tá bem diferente, sabia? Já vi ele no escritório lá de casa algumas vezes, falando no celular altas horas da noite. Quando ele conversa com algum assessor no telefone, tá sempre bravo, sempre tá falando num tom superior. Só que dessa vez ele estava manso, gentil. Já vi a minha mãe e a minha irmã comentando que ele estava diferente. Elas já sacaram que pode ter alguma coisa acontecendo com meu pai. Afinal, não é a primeira vez que ele trai a minha mãe, então ela já reconhece quando Fernão tá com uma nova. – Tocou uma mecha de meu cabelo com os dedos de uma mão, porém de modo meio descoordenado. – Mas não sei se ela tem certeza que a xota da vez é a sua. Por enquanto, acho que só eu sei.

Cruzei os meus braços. Eu tinha que retrucar, contudo deveria ainda ser cautelosa. Se sóbrio Henrique não é dos mais equilibrados, bêbado era absolutamente imprevisível. Suspirei, procurando um tom mais calmo pra perguntar:

– E o que você veio fazer aqui? Me chantagear? Logo a mim?

Ele balançou a cabeça em tom de negativa. Deu-me as costas e esparramou-se no sofá, de pernas abertas. Sentei-me no braço do assento, ao lado daquele rapaz. Naquele ponto, a iluminação não era tão boa. Havia uma luminária bem perto mim, porém não quis acendê-la. Deixei que as sombras nos cobrissem durante aquela conversa.

– Não – ele me disse, continuando calmo. – Não adiantaria muito, eu já sei. Você sempre fez questão de demonstrar que eu estou derrotado. – Percebi o canto da boca tremendo. – Mas por que ele? É pra se vingar de mim? Você já conseguiu...

Ele ergueu-se mais um pouco, inclinando-se na minha direção. Com esse movimento dele, minhas costas se retesaram, e eu já estava pronta para uma agressão física ou para fugir. O que aconteceu a seguir, contudo, surpreendeu-me em absoluto.

Henrique segurou as minhas duas mãos. Havia lágrimas em seus olhos. Sua voz ficou mais fraca, enquanto ele quase me suplicava:

– Por favor, me deixa em paz. Eu não aguento mais. Não continua com isso, não me humilha na frente dele.

– Mas Henrique... – disse eu, ainda sem muita reação.

– Você tá me humilhando! Você não é minha namorada de verdade, eu sei disso. Mas aquele desgraçado não sabe. Ele pensa que tá tirando você de mim. – Parou, engolindo com dificuldade. Sua voz parecia prender-se na garganta frente aquela emoção crescente. – Aquele filho da mãe... ele sempre fez questão de me lembrar que eu não presto, que eu não valho nada... e ele é maravilhoso, pai de família, pastor da Igreja, que todas as mulheres que passam pela frente querem logo dar pra ele... ninguém sabe quem ele é. Eu sei quem o infeliz é...

O rapaz abaixou a cabeça. Seu corpo curvou-se na minha direção, enquanto seu rosto escondia-se no meu colo. Em seguida, ele começou a soluçar. Percebi que Henrique chorava.Ainda sem saber muito o que fazer, encostei uma mão nos seus cabelos, contudo não comecei a alisá-los. Já o rapaz apenas tremia o seu corpo, enquanto deixava as lágrimas fluírem.

Ficamos assim durante um bom tempo. Henrique derramava as lágrimas em cima da mulher que ele agrediu, tentou violentar e até mesmo já ameaçara de morte. Aquele homem, desde nossos primeiros encontros, havia me revelado tantos defeitos seus que eu jamais poderia imaginar que ele seria capaz de entregar-se à fraqueza e desabar daquele jeito.

Aos poucos, o rapaz parou de tremer, de soluçar. Permaneceu, porém, com o rosto enterrado entre minhas pernas, enquanto eu deixava minha mão repousada entre os seus cabelos. Quando se acalmou mais, Henrique virou a cabeça para o lado, contudo permaneceu recostado em meu colo. Com sua mudança de posição, tirei meus dedos da sua cabeleira loira. Estranhamente, o garoto pegou minha mão e gentilmente recolocou-a sobre seu couro cabeludo.

Durante poucos segundos, ele permaneceu segurando a minha mão sobre a sua cabeça. Franzi o cenho, confusa com aquele comportamento. Passei, portanto, a deslizar os meus dedos na sua cabeça. Só então Henrique soltou o meu punho. Entendi, então, o que ele queria: carinho. Que tipo de criatura poderia ser essa, quanta carência poderia ter um indivíduo para pedir afeto justo para mim, após tudo o que havíamos passado?

– Eu sei quem é aquele maldito – continuou Henrique. Sua voz deu outra enfraquecida. Senti a sua dificuldade em dizer as próximas palavras, como se fizesse um esforço quase físico para continuar: – Pregava a palavra do Senhor na igreja, mas batia em mim com toalha molhada pra não deixar marca. Dizia que eu estava em pecado. Ele dizia que eu era o pecado dele. – Henrique pegou firme uma de minhas mãos. Apertava-a, porém não era para me agredir. Era quase para conseguir se apoiar em mim. Com mais sofreguidão, ele prosseguiu. – Batia em mim e dizia que eu sou o pecado dele... eu sou o pecado dele... eu sou o pecado dele...

E repetiu, enquanto o choro novamente voltava. Sua voz estava mais rouca e mais falha. O rapaz inspirou fundo, procurando forças para desabafar:

– Eu sou o pecado dele quando a gente tomava banho junto quando eu era pequenininho... eu sou o pecado dele quando ele pegava no meu pintinho no chuveiro... eu sou o pecado dele quando ele me mandava pegar no seu pau...

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