Capítulo 40

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Poucas horas depois, já estava de volta em casa. Havia chegado a Recife bem na hora do almoço. Meu sogro e amante estava absolutamente imerso em sua raiva, sem muita disposição para dar-me a devida atenção.

Fernão seguiu mudo boa parte do voo e caminho para a minha casa. Quando estávamos nos aproximando do meu endereço, ele pediu-me para providenciar o transporte de minha mudança.

Por conta de sua raiva, aquele homem falava comigo de modo reto, assim como o fazia com seus subalternos. Procurei ser compreensiva, como uma boa namoradinha.

Seu carro estacionou bruscamente na frente do edifício onde eu morava. Após um beijo de despedida, Fernão pediu-me para não lhe telefonar. Prometeu, no entanto, entrar em contato até o final do dia, quando toda aquela situação estivesse resolvida.

Sem muita saída, acabei acatando as suas ordens. Internamente, porém, estava bem incomodada com o andamento de tudo.

Henrique havia sumido e eu não sabia o motivo, Hilda fora levada ao hospital, e Fernão estava verbalizando, com veemência, a sua intenção de fazer o filho desaparecer de vez. Era, portanto, imprevisível o resultado daquela situação. E cabia a mim apenas esperar, por enquanto.

Horas depois, a escuridão caiu sobre a cidade, restando apenas os pontos amarelos sobre ruas e rios. De modo inédito, fazia frio naquela noite. Era estranho, pois setembro já terminava, e estávamos quase em época do calor no hemisfério sul. Viver num clima litorâneo tão perto dos trópicos, no entanto, era estar sujeito a essas mudanças súbitas.

Decidi preparar um café com leite e canela. Escolhi uma caneca grande e fiz uma generosa porção bem quente. Fui à varanda e sentei na cadeira acolchoada e reclinável, começando a observar a cidade.

Apesar de praticamente não ter comido naquele dia, estava sem fome. Na verdade, eu estava ansiosa por saber que minhas peças se jogavam sem mim. Não podia ligar para Fernão, pois ele não queria. Igualmente, não deveria telefonar para Henrique, pois se meu sogro descobrisse ficaria bem ciumento.

Enquanto observava as curvas do rio Capibaribe, que interrompia a Agamenon, deixava os meus pensamentos me levarem. Beberiquei um pouco do café. Se eu não podia fazer nada, ao menos ficaria planejando os próximos dias. As semanas onde em breve eu e a minha priminha iríamos morar em um apartamento de Fernão.

Ao longe, pude escutar o nome Íris. Primeiro, pensei que fosse fruto da minha meditação. Ao voltar à realidade, pude perceber que aquele chamado era real. Erguia-se das profundezas do bairro da Boa Vista.

Ecoava por toda a rua e meu condomínio. Levantei-me, olhando, da varanda, para a portaria. Vinte andares abaixo de mim, reconheci de imediato aquela pessoa gritando por um de meus nomes, bem no meio da rua.

Henrique.

Ergui-me rapidamente, pois não queria causar nenhuma confusão naquele prédio. Afinal, não havia de fato nenhuma Íris morando por ali. E, se houvesse, acarretaria em um mal-entendido difícil de resolver. Minha real identidade, então, estava em risco. Precisava, portanto, atender Henrique o mais rápido possível.

Não demorou muito e eu já estava no térreo, pedindo para o porteiro liberar a entrada. A grade abriu-se, e o rapaz entrou cambaleante. Com um tropeção, aquele loiro enorme caiu em cima de mim. Tive que me segurar na parede para conseguir conte-lo.

Quando consegui colocá-lo novamente ereto, olhei em seu rosto. Apesar de não sermos os melhores amigos do mundo, impressionei-me com o estado no qual se encontrava.

Sua face, antes tão bonita e charmosa, estava absolutamente inchada. Os olhos estavam ambos roxos, porém o esquerdo mal se abria. Seu cabelo estava em desalinho, a boca cortada, enquanto sua camisa polo encontrava-se até mesmo suja de terra.

Comecei a carregar o rapaz para dentro. O porteiro ofereceu-se para ajudar-me. Prontamente, neguei. Não queria que aquele homem me chamasse de Pilar na frente de Henrique.

Com toda a dificuldade, conseguimos chegar até o elevador. A procissão continuou no meu andar. Havia ficado tão receosa com Henrique gritando na portaria que tinha esquecido a porta do apartamento de Leona aberta. Por sorte, nosso condomínio era bem seguro.

Como se carregasse uma saca de feijão nas costas, despejei Henrique no sofá. Ele caiu, esparramado. Ergueu sua face, encarando-me. Eu apenas o fitava, sem falar mais nada.

Enquanto fui fechar a porta do apartamento, Henrique pediu-me água. O rapaz falava de maneira bem embolada. Não sabia se era por conta do estado de sua face ou por ele ter bebido demais.

Sem saber muito o que fazer, fui até a cozinha pegar um copo com água. Quando voltei, Henrique não estava mais sentado no sofá. Olhei rapidamente para os lados, vendo um dos sapatos do garoto largados no começo do corredor. Quando me aproximei do calçado, vi outro mais a frente, e meias, calças com cinto, cueca.

Ergui os meus olhos, vendo aquele loiro bronzeado caminhando pelo meu corredor. Ainda estava cambaleante, porém tirava a sua roupa suja com rapidez, largando-a pelo caminho. Ele olhou para o lado, vendo a porta do banheiro aberta. Tentei alcançá-lo, desviando de suas vestes caídas no chão.

Quando cheguei ao banheiro, ele já estava debaixo do chuveiro. A água caiu pelo seu corpo, limpando a terra que estava em algumas partes de sua pele. O rapaz encostou-se com as duas mãos na parede da frente, deixando a corrente cair por sua nuca. Vi seus joelhos arquearem-se. Aos poucos, ele deixava-se cair no chão.

Primeiro, pensei que Henrique estava desmaiando. Depois, vi que ele queria apenas sentar-se. Ficou assim, com seu tronco ainda debaixo da corrente de água. Esticou as suas longas pernas dentro do boxe, como uma criança bem pequena que não sabe ficar de pé. Colocou as duas mãos na face. E chorou.

Chorava. Soluçava. Entregava-se. Deixava as lágrimas lavarem seu rosto, e o banho a sua alma. Apenas tremia debaixo daquele chuveiro, sem se importar quem estivesse por perto olhando.

Já eu o observava da porta de entrada do toalete, ainda segurando o copo com água que ele havia me pedido. Mais uma vez, via aquele homem desabar à minha frente.

Coloquei o copo sobre a pia ao meu lado. Em seguida, tirei a minha roupa. Sem muitas cerimônias, fiquei pelada. Entrei no boxe junto com aquele rapaz. Ele não ergueu a sua face. Na verdade, ainda escondia o seu rosto com as mãos, enquanto seu corpo tremia por conta do choro.

Sentei-me entre suas pernas, de frente para Henrique. Ao notar-me ele desceu seus braços e ergueu o seu rosto. Sua face estava contorcida pelos machucados e pelo seu pranto. A água corria por sua cabeça, jogando seus cabelos loiro-cobre molhados em sua testa bronzeada. Apesar de tudo aquilo, era nítida a sua expressão de um menino assustado.

Puxou-me para si, abraçando-me. Ficamos assim, juntos debaixo do chuveiro.

E a água apenas fluía em nós.

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