Capítulo 20

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Noites de sábado sempre tiveram uma expectativa especial para mim. Mesmo quando eu ainda era uma pré-adolescente nos subúrbios de Garanhuns, ia à varanda observar os jovens se dirigirem para o centro da cidade. Eles passeavam na pracinha, namoravam atrás da igreja, frequentavam ótimas soverterias. E eu lá, presa em casa, cuidando de minha mãe.

De segunda a sexta-feira, tal fato podia até mesmo incomodar. No sétimo dia da semana, porém, nada das minhas dificuldades importavam. Misteriosamente, sentia-me animada tão-somente pelo fato de ser sábado à noite.

Essa energia enigmática acabou me acompanhando até Recife. Em minha nova cidade, porém, essa sensação mudou de forma e significação. Passou a ser, portanto, a disposição com que eu contava para dar os grandes passos de minha vida.

Naquela noite de mais um sábado mágico, preparava-me para a nova fase que havia conquistado.

Ergui os meus olhos, encarando a minha imagem no espelho do meu quarto. Usava uma camisa de botão na cor branca, com um tecido bem solto e leve, com mangas dobradas acima do cotovelo. Aquela era uma das raras ocasiões que eu usava uma calça. Escolhi uma jeans de tom claríssimo. No rosto, uma maquiagem bastante suave, posta apenas para tirar o excesso de oleosidade da pele.

Meu telefone tocou. Mesmo sem conferir o número no identificador de chamadas, já sabia quem era. No exato momento da primeira vibração do aparelho, meu coração disparou. Peguei o celular, inspirando profundamente antes de atender. Do outro lado da linha, uma voz seca ordenava-me para descer.

Meus pés rápidos guiaram-me para fora do edifício. Não demorei muito a encontrar a minha carona. Dirigi-me para o veículo e entrei.

Ao volante, o motorista olhava para frente, sem esboçar nenhuma reação quando entrei no carro. Antes mesmo que eu colocasse o cinto de segurança, Henrique acelerou.

E fomos para a casa de seus pais.

***

As luzes alaranjadas dos postes passavam pela janela ao meu lado. Cortavam o ar rapidamente pelos meus olhos, que brilhavam. Sim, havia ainda dentro e mim a eterna moça do interior apaixonada pelas luzes, pelo concreto, pelos edifícios grandes e as casas de comércio modernas da cidade grande.

O carro atravessava bairros à beira-mar, com moradias valorizadas pela localização. Prédios, galerias, shoppings, lojas, boutiques, restaurantes, tudo o que eu passei a vida vendo apenas em fotos e televisão.

Passamos por bairros de classe alta na praia como Boa Viagem e Candeias, até que os sinais de civilização começaram a desaparecer.

Àquela altura, prosseguíamos por uma estrada quase vazia. De um lado, o mar obscuro da noite, rugindo com as ondas em seu infinito. Do outro lado, árvores e algumas poucas casas mais simples.

Confesso ter ficado ligeiramente preocupada, imaginando que Henrique poderia querer aprontar novamente. Sabia, no entanto, que ele estava ciente da ineficácia de suas ameaças. Felizmente, não demorou muito para que essas preocupações desaparecessem.

Chegamos a uma ponte estaiada, onde o rapaz pagou devidamente o pedágio. Logo em seguida, seguimos pela passagem, passando por debaixo de uma placa que nos dizia: Seja bem-vindo(a) à Reserva do Paiva.

Quando Leona me contou que as pessoas de classe-alta da cidade se escondiam, ela não estava exagerando. Aquele pedágio era praticamente uma passagem para um reino oculto. Lugar onde não havia transporte público superlotado, nem jovens lavando o para-brisas de carros no sinal para arrumar uns trocados. Não havia favelas, sequer casas mais simples.

Tudo estava arranjado como esmero para higienizar a região de qualquer coisa que lembrasse a desigualdade que assola qualquer grande centro desse país. Uma realidade tão diferente que muitas casas por ali sequer tinham muros, algo inconcebível para mim até então.

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