Capítulo 45

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Quase como uma esposa dos anos 50. Era desse modo que eu me sentia, ao preparar o almoço para Fernão, em meu primeiro domingo em minha nova casa. Após dias tão estressantes, aquela era a única prova de carinho e acolhida que eu poderia lhe dar. Tratava, portanto, de arrumar a mesa com esmero, colocando nossos pratos lado a lado.

Coloquei um terceiro prato à mesa. Sim... havia uma pessoa a mais. Tinha um metro e quinze, pele morena clara, cabelos cacheados loiros à altura dos ombros e olhos cor de âmbar.

Seu corpo ainda não havia revelado as formas da puberdade, conservando traços de menina. Tinha catorze anos, porém seu físico era de alguém muito mais novo. De certo, a baixa nutrição na infância lhe causara aquele corpo mirrado. Por esse motivo, disse para o meu sogro-amante que ela tinha onze.

O nome dessa minha prima seria Rosinha, escolhido especialmente por mim como mais uma flor de meu jardim. A garota era brejeira e astuciosa como toda menina com as suas condições econômicas deveria ser.

Naquele momento, a pequena usava apenas um vestido lilás e solto, caído até os joelhos, com alcinhas finas dependuradas no ombro ossudo. Estava parada à entrada da cozinha, ainda quieta e observadora.

Mesmo estando comigo há alguns dias, a pobrezinha ainda não havia se acostumado a morar em um lugar como aquele. Ao vê-la parada ali, quase hipnotizada com todo o conforto à sua volta, lembrei-me de minha infância. Era com aquela mesma expressão que eu fitava o interior das residências de minhas amigas da escola, inclusive a de Leona.

Resolvi aproximar-me da pequena. Puxei uma cadeira e sentei-me a sua frente. Segurando suas mãos magras e ásperas, olhei-a profundamente nos olhos.

Apesar de seus trejeitos acanhados, não percebi em sua íris qualquer receio. Havia ali uma resignação tal que só se conquistava com a vida, aprendendo a sobreviver dia após dia nesse mundo tão cruel para quem não havia nascido em famílias como a Alencar. Procurei dar-lhe um sorriso mais amigável que eu conseguia, e indaguei:

– O que você vai fazer com o dinheiro que eu te dei?

Tarsiana abaixou ligeiramente os olhos e respondeu:

– Acho que vou voltar pro interior e procurar a minha mãe. Desde que fugi de casa, nunca mais encontrei ela.

Tirei um cacho aloirado da frente de seu olho e lhe fiz nova questão:

– E por que você fugiu de casa?

Ela voltou a encarar-me, e contraiu o canto da boca. A menina respondeu:

– Meu padrasto me batia muito... fazia coisas...

– E você quer voltar pra lá? Quer apanhar mais daquele teu padrasto desgraçado? Quer voltar a passar fome?

Seus olhos encheram-se de lágrima. A garota retrucou:

– Todo dia eu encontro um homem tão mau quanto meu padrasto...

– E se eu te falasse que existe uma forma de melhorar? – Alisei sua testa. – Eu também era do interior. E também já fui pobre como você.

Totalmente surpresa, ela arregalou os olhos. Olhou ao redor, provavelmente questionando-se como uma moça dona de uma cobertura daquelas poderia ser de origem humilde. Para clarificar suas dúvidas, falei:

– Tudo o que eu conquistei dependeu somente de mim. – Firmei um pouco mais minhas mãos nas suas. – Seja esperta! Eu sei que você é. Foi inteligente e corajosa o suficiente pra atravessar Pernambuco e vir para cá. Mesmo sem dinheiro, você sobreviveu a tudo. Responda pra mim; você acha que, realmente, uma menina tão forte como você não é capaz de ter um apartamento desses?

Entre lágrimas, ela sorriu para mim.

– Aprenda comigo hoje – continuei. – Pegue esse dinheiro e guarde pra você. Use só pra melhorar você mesma. Faça de tudo, exatamente tudo, pra conseguir se dar bem como eu. Você está sozinha no mundo, Tarsiana, então faça o que for possível pra se defender. Aprenda a vencer. Sempre. E, depois, quando você estiver bem de vida, volte pro interior. Mas não pra visitar sua família. Quando você voltar pra casa, deve fazer com teu padrasto o mesmo que ele fez com você. – Arqueei a sobrancelha. – Pague dois negões da pica grande e peça pra eles se divertirem com teu padrasto. Ao mesmo tempo.

Rimos as duas. Aquela pequena alma estava perdida, porém conservava a força e a gana de vencer em suas retinas. Fiz com ela algo parecido que meu pai havia feito comigo. Dei-lhe a oportunidade, não a solução. E essa chance, naquele momento, tocava a campainha daquela cobertura.

Abri a porta de entrada, e Fernão acolheu-me entre seus braços. Após um beijo rápido, percebi o enfado em sua face.

Meu sogro-amante confessou-me estar bastante cansado, tanto que nem havíamos conseguido nos encontrar naquela semana como ele havia me prometido. Aquele homem abraçou-me, dizendo que, naquele dia, eu seria seu porto seguro.

Enquanto rumávamos para a cozinha, Fernão percebeu uma garota sentada no sofá. Franzindo o cenho, ele sorriu e questionou se aquela era a minha linda priminha de quem eu falara nas últimas semanas. Apresentei-lhe Rosinha.

Meu amante sorriu mais ainda, e comentou sobre o fato de nós termos nome de flores. Respondi-lhe falando que aquela era uma tradição de minha mãe e suas irmãs.

Fernão aproximou-se para envolver com sua mão grande aquele punho mimoso da menina. Esta, sempre tímida, abaixou a cabeça e deu um sorriso minguado. Enquanto apertava a mão do meu amante, a minha priminha passava displicentemente seus cachinhos aloirados para trás de sua orelha, em gestos pequenos.

Durante o almoço, Fernão, sempre cavalheiro, dirigira a sua atenção quase total para a prima de sua amante. De verdade, a garota era um encanto. Já à mesa, percebi outros pontos em comum comigo.

Nos últimos dias, eu havia lhe treinado como se comportar, o que falar e como responder. Seu talento natural era uma qualidade visível até para olhos cegos. Mesmo tímida, era bem-comportada, simpática, e com um sorrisinho fofo que encantava qualquer um.

Enquanto a observava, eu sorria internamente. Tive a conclusão de que se nós duas fôssemos realmente parentes, talvez não nos parecêssemos tanto.

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